Arquivos Raul Lody - Página 6 de 6 - Revista Algomais - a revista de Pernambuco

Raul Lody

Açúcar: um caminho por Gilberto Freyre - Por Raul Lody

Indicador de caminhos e provocador nas suas questões, Gilberto Freyre possibilita uma permanente e sempre atualizada leitura e compreensão sobre o homem situado no Trópico. Inovador, trata da cultura material integrada aos contextos da casa, na rua, no trabalho, privilegiando o que a cana sacarina oferece de referências integradas e integradoras desse homem que vai formando sua casa seus sentimentos, apontando processualmente o que é e como é esse ser chamado brasileiro. em dúvida, uma grande aventura essa da culinária brasileira e, em especial, o doce, tema tão próximo em vivência e em análise por Gilberto Freyre. Nordeste e Açúcar dois textos intercomplementados, que trazem a vida cotidiana da sua região, o seu Pernambuco e amorosamente o seu Recife. Gilberto recorre à história e traça na antropologia transgressora, nova, tendo na coragem de ampliar fronteiras seu traço autoral e de sensibilidade, enquanto fundante na ampla e complexa sobre o brasileiro. Para compreender processos de chegada, de fixação, de ações coloniais no Brasil, sem dúvida o açúcar é o caminho preferencial da ocupação e da formação social e cultural do brasileiro. Assim, Gilberto escolhe também um caminho: o caminho do açúcar. Gilberto Freyre em Açúcar: em torno da etnografia, da história e da sociologia do doce no Nordeste canavieiro do Brasil, com numerosas receitas raras de doces e bolos da região e, para efeitos de comparação, algumas de outras áreas brasileiras e outras tantas de Goa (Índia Portuguesa), reunidas e selecionadas pelo autor, resulta em um texto farto como se oferecesse um cardápio de opções, dizendo que o ato de comer é um ato global. Come-se com o corpo inteiro. Inicialmente come-se com os olhos, depois come-se com o olfato; come-se com o tato, come-se finalmente com a boca, com o prazer, de um sentido tão aguçado que já é um sentimento. Contudo, ainda se come-simbolicamente, comendo-se a cultura, comendo-se a história, a civilização e de uma certa maneira come-se também o homem, uma metáfora antropofágica, pois come-se os valores e os significados plenos do que é oferecido em alimento e diria ainda, come-se a si próprio, como em um contato quase litúrgico e profundo da intimidade do eu individual com o eu coletivo, a própria cultura. Comer, um ato biológico, indispensável e principalmente um ato simbólico, ritualizado, seguindo os padrões da cultura, das ofertas do meio ambiente, das maneiras de misturar, preparar e servir, sendo certamente o ato mais pleno do homem, somente comparado ao sexual. O açúcar adoçou tantos aspectos da vida brasileira que não se pode separar dele a civilização. Para os anos 30, época da primeira edição de Açúcar, um homem interessado por receitas de bolo, doces de frutas e mais ainda por papel de seda recortado como se fosse renda para enfeitar pratos, tabuleiros foi um verdadeiro escândalo; como um sociólogo na cozinha? Sim, na cozinha, na intimidade da casa e mais ainda, na intimidade de quem fazia a casa pulsar, o fogão funcionar, as receitas reviver, as vendas e ganhos nas ruas por mulheres em condição escrava, das sobremesas dos restaurantes populares, aos hábitos de comer e de beber em casa, na rua, no cotidiano e no tempo da festa. Assim, pioneiramente Gilberto Freyre já traçava seus múltiplos caminhos para interpretar, conhecer, documentar e especialmente interagir com o homem regional – homem nordestino – em parentescos onde cabia o sangue, mas principalmente cabia a alma coletiva do povo. Falar de fruta, de açúcar, de canaviais, de receitas de bolos, falar da alta importância das diferentes culinárias do Nordeste, auferindo valor patrimonial tão patrimonial como os açucareiros de Macau, os brasões dos barões, as armas dos heróis oficiais e épicos. Forma Gilberto Freyre um olhar sensível e antropológico perante o homem nordestino, vivendo e etnografando esse mesmo homem; homem tropical, bi-africanizado, criativo, reunindo na mesa o Ocidente e o Oriente do mundo. Adaptando receitas dos mosteiros medievais, incluindo o caju e a pitanga, frutas telúricas, bem como o coco verde, a manga, a jaca, a fruta-pão todas exóticas ou nacionalizando mesas com toalhas de linho e bordados, ampliando o uso de louças da China, ampliando o uso de louças de barro, de madeira, comendo na esteira, comendo de mão, ou partilhando doce de araçá com o Menino Deus no altar doméstico da casa-grande. Manifestando profundo entendimento sobre o que come, como come, quando come, formando cardápios, cozinhas, ampliando os pratos de milho do São João, quiabos e dendê dos Xangôs, bolo Souza Leão servido em porcelana fina, sarapatel de feira e de mercado, doces, tantos e variados doces de um Recife ungido de açúcar, como é ungido de rios e de praias. Gilberto Freyre oferece em sua obra civilizatória inúmeras opções para provar em textos consistentemente bem temperados, gostosos, como um diversificado e sedutor cardápio das relações sociais, da formação da cultura brasileira. Assim, profundamente inspirado em Açúcar de Gilberto Freyre venho realizando sistemático trabalho de antropologia da alimentação desde a década de 1970, vendo, vivendo e provando pratos, inteirando-me dos cotidianos, das festas, da religiosidade, vivendo o meu projeto brasileiro, comprometido com o brasileiro. Agora em 2019 o livro Açúcar de Gilberto Freyre celebra 80 anos da sua publicação.

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Caju, o sabor brasileiro - Por Raul Lody

O Brasil ainda revela seus imaginários de um paraíso tropical, certamente em virtude das chamadas belezas naturais, reunindo diversos ecossistemas, incluindo-se amplo litoral, montanhas, florestas, vales, áreas alagadas como o pantanal, o cerrado, bacias hidrográficas magníficas como a da Amazônia, rios quase continentais como o São Francisco, enfim cenários privilegiados de flora, fauna e também de diferenciada ocupação humana, de cultura e de interpretações dessa diversidade que identifica e marca o país. Entre os muitos símbolos desse Brasil tropical, de natureza variada e generosa estão as frutas. Frutas carnudas, coloridas, saborosas, de odores e de gostos especialíssimos. Muitas frutas chegaram pela mão do colono português, introduzindo a manga, a jaca, a fruta-pão, a banana, todas originárias do Oriente, contudo as frutas da terra, nativas são muitas e de ocorrência nacional e assim destaco o nosso tão conhecido e celebrado caju. A exuberância e variedade de formas, de estéticas ecológicas, sempre marcam as nossas frutas, diga-se: frutas do mundo aqui nacionalizadas e tantas outras nativas, da terra, que juntas constituem esse rico acervo de cheiros e paladares que fizeram com que os viajantes, homens de arte e de ciência que vieram de diferentes partes da Europa para conhecer, documentar e revelar para o mundo essas terras tão exóticas, diferentes, de um Brasil tropical, pudessem exercer diferentes formas de documentação. Entre tantos viajantes artistas destaco Albert Eckhout, pintor que chegou ao Brasil, Pernambuco, por convite de Mauricio de Nassau, 1637/1644. Eckhout, nasceu em Groningen, Holanda, 1610 e integrou a corte de Mauricio de Nassau, convivendo com outro pintor Frans Janz Post. O trabalho visual, pinturas, de Eckhout ganha excepcional valor documentalista, registrando pessoas, tipos de características étnicas bem definidas e principalmente elementos de uma natureza muito colorida, diferente, marcada por frutas, árvores, flores, animais e cenários de uma exuberante natureza. No caso destaco uma das pinturas mais conhecidas de Eckhout chamada Mameluca, onde vê-se exímio trabalho de desenho botânico de cajueiro e seus frutos. A obra de Eckhout encontra-se no Museu de Copenhague, 1641, ofertada por Mauricio de Nassau ao rei da Dinamarca, Frederico III. A pintura Mameluca, retrata um tipo étnico, mistura de elementos raciais entre o branco, no caso o português, e o ameríndio, o nativo do Brasil. Em descrição detalhada da pintura de Eckhout, temos a seguinte análise: “(...) Ainda em plano próximo salienta-se uma árvore, um cajueiro (Anacardium Occidentale L.) abundantemente frutificado e com os cajus em diferentes estados de maturação (...).”1 O interesse em retratar o caju em um conjunto de onze telas, destaca a ocorrência e o significado da fruta para a região Nordeste, para ampla área da costa brasileira. A fruta de muitos usos O cajueiro é uma árvore celebrada e está no variado imaginário tradicional e popular brasileiro. Além do consumo da fruta in natura e muitos outros aproveitamentos da culinária enquanto doce, vinho, castanha assada que é muito apreciada e consumida como acompanhamento de bebidas ou na receita de bolos como o pé-de-moleque, um prato que integra a mesa festiva do ciclo junino é alimento diário de muitos brasileiros. Além das formas doces: em calda, como passa destacando o açúcar da fruta, a tão celebrada passa de caju, um quase símbolo do Ceará está ainda em pratos salgados, destacando-se a famosa moqueca de maturi. As bebidas feitas de caju também ampliam possibilidades gastronômicas e comerciais. Inicialmente a tão conhecida cajuada – suco de caju, excelente bebida refrescante e muito saudável. Ainda de maneira industrial a cajuína e o vinho de caju, além do licor e outras criações próprias da dinâmica inventiva das cozinhas A estética do caju e do cajueiro. A forte presença do caju no imaginário brasileiro ocorre em diferentes técnicas artesanais, retratando a fruta como tema principal ou compondo cenas regionais presentes no nosso artesanato/arte popular. Na xilogravura, o caju é um componente que centraliza muitas obras, ocorrendo ainda de maneira alegórica. Há uma referência dominante sobre o caju enquanto símbolo do trópico, do sol, das cores fortes e quentes e assim é interpretado e incluído em vasta produção dos gravadores populares. Entalhes de madeira, pinturas sobre tecido, bordados, pinturas em material cerâmico, sobre outras superfícies, pinturas sobre papel e tela entre muitas outras técnicas revelam a inventiva tradicional e contemporânea de mostrar o caju e sua trajetória, unindo o valor da fruta telúrica e demais temas que identificam a natureza brasileira, o cotidiano, a festa, o homem regional. Também nas tradições orais, na literatura, nas cantigas o caju é um tema muito ocorrente, fazendo diferentes autores louvar e relacionar a fruta com estéticas que revelam o Nordeste interpretando o homem do litoral, o ciclo das colheitas em um tempo em que os cajueiros chegam com suas flores bancas e dão frutas coloridas, exalando odores, anunciando sabores e preferências do brasileiro. Como o coqueiro (cocos nucifera L.) para o Oriental, notadamente o indiano, o cajueiro seria o mesmo para o brasileiro, representando se houvesse uma árvore símbolo do paraíso em virtude das inúmeras possibilidades do seu aproveitamento para a vida do homem. O cajueiro é uma árvore de múltiplos usos, sendo para o nativo, o da terra, uma espécie botânica que alimenta, que produz remédios, cuja madeira é empregada para a construção de embarcações, especialmente a jangada, além de representar no imaginário popular uma das plantas mais queridas do Nordeste. Assim, estabelecem-se profundas relações entre o brasileiro e o cajueiro, tendo na fruta uma forte referência de cultura. Pois o homem, esse eterno tradutor do meio ambiente, usa e dá significados aos inúmeros elementos da vida natural e assim vai representando os seus entornos e se representando, construindo identidades.

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Xangô: soberania alimentar nas tradições de matriz africana em Pernambuco

Um caso exemplar sobre a organização social e religiosa do Xangô em Pernambuco está no reconhecido terreio-matriz do Nagô Egbá, ‘O Sítio’ e sobre temas complexos que trazem hierarquia, rituais memórias africanas preservadas na música, nas danças, nos vocabulários e nas comidas, quando são acionados todos os símbolos de identidade e de pertencimento a uma história, a uma tradição. Assim as comunidades de terreiro de matriz africana sempre se notabilizaram pelos diferentes ingredientes e pelas muitas comidas, pois o sagrado, nestes territórios, é marcado com a alimentação dos deuses e dos homens. No bairro de Água Fria, Recife, numa área tombada pelo Patrimônio Cultural de Pernambuco em 1985, vive uma comunidade dedicada aos orixás e aos seus antepassados, especialmente os orixás Xangô e Iemanjá. Chamado de Terreiro Obá Ogunté Seita Africana Obaomim, também conhecido como Sítio ou Sítio de Pai Adão. O processo para o tombamento do Terreiro Obá Ogunté Seita Africana Obaomim recebeu o número 103, em 13 de janeiro de 1984, FUNDARPE, por solicitação de Raul Lody. O processo para o tombamento de patrimônio cultural busca atingir manifestações culturais fora do sistema oficial de bens tombados que atestam a história e os fatos do poder estabelecido. Esse foi o primeiro terreiro tombado, em âmbito estadual, por intermédio do Decreto 10.712, de 5 de setembro de 1985. E, assim, o Sítio em 2015 celebra seus 30 anos do seu tombamento. O Terreiro é um local de encontros, e aonde são reativados os laços de parentesco de santo, laços de parentescos consanguíneos; e também onde são mantidos todos os elos necessários ao culto dos orixás: Enfim, é o local onde a memória é aquecida através de rituais que podem ser diários ou que seguem os calendários das festas. No Terreiro há um amplo e fascinante jogo simbólico dos sentidos e dos sentimentos entre os membros da comunidade e da sociedade. Comida, sons, gestos e objetos, vivificam histórias, lendas, relações entre homens e deuses, e falam sobre a natureza e a África. Uma pequena África no Recife Comer o sagrado São muitas as comidas que formam os cardápios dos orixás. São comidas especialmente preparadas pela iabassê, mulher iniciada, preparada para alimentar os deuses e a comunidade do terreiro. Cada ingrediente, tempero, quantidade, técnica culinária, e estética do prato, tem um significado, e assume um valor na liturgia da alimentação. É tradição nos terreiros comer bem, e muito, pois a fartura das comidas é uma marca do sentido de que a natureza é capaz de prover e de nutrir os homens. Nutrir também os orixás com os seus pratos especiais. Sem dúvida, há uma comunicação intensa entre as cozinhas dos terreiros e as cozinhas das casas; entre os cardápios do cotidiano e o cardápio das festas. Nesses muitos e variados cardápios estão as comidas de dendê, o uso de temperos tradicionais africanos como o atá ou ataré que é a pimenta da costa; os frutos, obi e orobô; e as favas lelecum e bejerecum; o quiabo e o inhame, também africanos. Produtos nativos, da terra, como o milho, a mandioca, o feijão; carnes de diferentes animais; e produtos do mar, especialmente o camarão; unem-se aos temperos para formar comidas saborosas, pois a maioria das comidas dos orixás Ainda destaco as comidas de quiabos e dendê, com o caruru de Cosme, para celebrar também os Ibejis, e outras receitas como, por exemplo, o beguiri que é uma comida ritual que pertence ao orixá Xangô é o begueri, prato feito à base de quiabo, camarões secos, azeite de dendê, carne de boi e muita pimenta. Este prato é servido numa gamela redonda de madeira. Gilberto Freyre se lembra de Adão, Pai Adão, conhecido no Xangô de Pernambuco como Opêatanan, e também Oxirê Obá, e com o cargo de Alapinim, e que teve os seus ensinamentos em Lagos, Nigéria, em 1906, terra dos Iorubá. Tornou-se lá o grande sacerdote e conhecedor das tradições e dos saberes que identificam os territórios do Xangô pernambucano, e que se espalharam pela sociedade afrodescendente. “Adão: o grande babalorixá do Fundão, subárea do Recife (...) na qual viveu Adão, de volta da África, a vida inteira, sem mudar sequer de casa – nem de casa nem de profissão – ao contrário de borboleteantes ioiôs brancos que em tantas casas residiram na mesma época. Conheci de perto o velho babalorixá de quem fui, repito, amigo íntimo. Mais de uma vez almocei à sua mesa de sacerdote que tinha a dignidade de um bispo. Quis escrever-lhe a biografia de perfeito afro-brasileiro. Sua morte impediu a realização, ou tentativa de realização, da biografia planejada; e para a qual cheguei a tomar notas como que taquigráficas de conversas. Seria ela trabalho de caráter menos histórico-social que psicossocial, embora igualmente sociológico nas suas pretensões. Seria menos histórico-social e mais antropológico-social por ter de basear-se principalmente em documentos pessoais orais, colhidos da boca do próprio biografado e de seus filhos, parentes, amigos, colaboradores, inimigos, rivais. (...)”. (Freyre, Gilberto Freyre in Pessoas, coisas & animais. Editora O Globo, 1981:44-47). O Sítio, até hoje, preserva e dá continuidade ao saber ancestral de Pai Adão, mantendo as festas, as liturgias, as músicas, as danças, as indumentárias; e as comidas, que são notáveis nas suas receitas, e nas realizações das iabassês que dão a cozinha o seu lugar de santuário, e de local de experiência profunda com o sagrado.

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Da África, a bebida que marca a comensalidade brasileira

Tão brasileiro, profundamente integrado aos nossos hábitos do cotidiano, sendo um dos melhores símbolos do bem-receber é o cafezinho; pois servir um café, partilhar numa conversa no balcão do botequim, da padaria, em casa, no restaurante ou no bar é viver o momento de encontro. Assim, o brasileiro é um povo que bebe e gosta de café. Café com leite, café carioca, com um pouco d’água; café pingado com um pouco de leite, café puro; café na xícara ou no copo; na xícara de porcelana ou no copo de vidro grosso é sempre um prazer, uma emoção; pois o café estimula, faz a gente estar pronto para o dia, arremata as refeições, complementa sabores de doces, logo após comer a sobremesa. É assim o café, trazido da África, da Etiópia, do oriente desse continente tão próximo do brasileiro, pois sem dúvida a nossa afrodescendência chega de diferentes lugares; da costa ocidental, Golfo de Benin; da área austral, Congo e Angola; da costa do Índico com Moçambique e pela civilização afro-islâmica há mais de mil anos na co-formação da civilização ibérica, fazendo do homem português, também um colono africanizado Algumas espécies nativas de Coffea estão na faixa equatorial que percorre grande parte da África, desde a Etiópia até o Congo, expandindo-se para o sul, chegando em Angola. A espécie Coffea Arábica, é da Etiópia, sendo levado pelos árabes, provavelmente no século XVI ou início do século XVII, para o Iêmen, ao sul da península arábica, no litoral do Mar Vermelho. O comércio amplia-se com os holandeses que levaram sementes para Java (Indonésia), onde foi a cultura do café introduzida em 1690. Assim, o Coffea Arábica iniciou sua trajetória e chega em outros lugares do mundo; de Java para o Ceilão, ao sul da Ásia; chegando nesse continente pela Costa de Malabar, na Índia (1700). Em seguida China, Formosa, Filipinas, Nova Guiné entre outras localidades. O café na América do Sul chega pelo Suriname em 1714, seguindo para Caiena, 1718, entrando então no Brasil em 1722. Depois do Pará, o café chega ao Maranhão em 1728, em 1747 no Ceará, em 1770 na Bahia; segue pelo Vale do São Francisco e entra em Goiás. Em 1770, Dom José Joaquim, bispo do Rio de Janeiro, faz os primeiros plantios no Rio de Janeiro. Espalham-se os cafezais por Minas Gerais e Espírito Santo, chegando no Vale do Rio Paraíba, São Paulo. Assim, em 1790, o café marca e fica em São Paulo, terra consagrada como do café, terra que seguiu um novo ciclo após as minerações de ouro e diamante. O ouro transforma-se e muda de cor. Grãos vermelhos e maduros de café; café torrado, marrom, novos cheiros, sabores e mercados. É São Paulo desbravando nas fazendas o amplo e importante ciclo econômico . Certamente além do gosto tão característico, o café tem um cheiro dominante, marcante, pois o ato de torrar o café é um anúncio que estimula o paladar, a boca, culminando na bebida quente, saborosa, um verdadeiro símbolo nacional. Os processos artesanais de torrar café têm suas histórias aliadas às cozinhas grandes e generosas das fazendas. Os processos do plantio, colheita, torrar, fazer e servir café seguem diferentes rituais, tendo no fruto estimulante o elo socializador de receber em casa, pois na bebida constrói-se o imaginário do brasileiro junto a uma xícara de café, embora a erva-mate e outras bebidas façam também os nossos patrimônios regionais. O saber popular e tradicional orienta as tecnologias do torrar, do cuidar dos gostos, mais tarde celebrados com açúcar, acompanhado de biscoito, bolo ou mesmo com licor, conhaque, vinho do Porto, entre outras. Café, bom de ver, de cheirar, de tomar e assim se sentir mais brasileiro.

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Comida de matriz africana em Casa-Grande & Senzala

Na busca de uma “unidade” na formação colonial marcada pela cana sacarina no Nordeste, Gilberto recorre às bases étnicas, mantendo o pensamento dominante à época ( anos 1930) sobre a trilogia: europeu, africano e indígena. Gilberto em Casa-Grande & Senzala expõe o que é Europeu com ênfase no que é lusitano e ibérico; e ao que é “nativo”, indígena. Já aquilo que é africano assume um destaque intencional, e ganha na obra um desejo de maior aprofundamento. Gilberto olha para as relações da África Magreb e a sua civilização afro-islâmica na península ibérica atuando na formação das cozinhas da Espanha e de Portugal. Mostra o africano em condição escrava, e destaca os papéis sociais da mulher africana, entre eles o de fazer comida, e vender comida nos “ganhos”, e nas “quitandas”. Está na mulher o amplo repertório de sabedoria culinária e de memória cultural. A mulher como “yá bassê” ( básè, em Yorubá, significa assistente de cozinha) é a responsável pela cozinha sagrada dos terreiros da tradição Nagô, e assim mantém as receitas de uso religioso . Gilberto destaca a ação civilizadora da mulher africana nas casas dos engenhos, nos ofícios das cozinhas, na mistura das receitas de Portugal com os ingredientes da “terra” , e com os acréscimos que chegam das memórias africanas. São novos gostos, gostos em construção, gostos brasileiros. Ele olha para a cozinha no contexto das relações interafricanos, nos contexto dos africanos em condição escrava, no contexto da crueldade da vida na plantation dos engenhos de se fazer açúcar, sem mergulhar numa “cordialidade” idealizada. Embora o Nordeste seja exemplificado e aprofundado em Pernambuco, Gilberto mostra a Bahia como um território de força e de expressão africana, e ainda cita o Maranhão e o Rio de Janeiro. Porém está em Pernambuco o foco e a experiência etnográfica de Gilberto, que se inclui como um viajante da sua própria cidade, o Recife. Em outras obras, Gilberto destaca as comidas do terreiro Obá Ogunté, Seita Africana Obá Omim, do Recife, em Água Fria, e localiza o importante babalorixá Adão Costa. Relata experiências gastronômicas nesse terreiro de Xangô da tradição Nagô, tido como o mais antigo do Recife. Gilberto valoriza [e certamente gosta] as comidas afrodescendentes, e assim chama esses acervos culinários de “manjar africano”. Informa sobre o uso de folhas nos processos culinários africanos, e nesta verdadeira “fusion”, unem-se tecnologias de embalar e de produzir comida a partir de modelos milenares americanos dos “tamales”, com receitas que expõem uma cozinha de matriz africana onde se notabilizam o acaçá, o abará, e outras comidas embaladas em folha de bananeira. Casa-Grande & Senzala detalha a feitura do acaçá, uma comida de milho branco, milho de mungunzá; uma massa cozida sem temperos para acompanhar vatapá, caruru de quiabos, peixes no dendê. Destaca assim os processos culinários com o uso da “pedra”, do pilão lítico, para processar o milho e o feijão, bases do acaçá e do abará. Na Bahia se valoriza a “pedra do acarajé”, que é o pilão, pois se considera que ele dá a melhor textura para as massas do acarajé, do abará e do acaçá. Nestas comidas estão as assinaturas das “baianas”, notabilizando o acarajé mais crocante, o abará melhor recheado; são comidas autorais de tabuleiro. As comidas de “tabuleiro”, hoje identificadas pelos: acarajé, abará, cocada, bolinho de estudante; e também pela “passarinha”, estão nas ruas, praças, adros, no caso da cidade do São Salvador. Permanecem os imaginários dos ganhos. É um ofício, que hoje, na grande Salvador, reúne mais de três mil “baianas e baianos de acarajé” . Gilberto traz em Casa-Grande & Senzala os “bolos de tabuleiro”, certamente criando categorias para os bolos. Pois os bolos identificam um lugar especial da doçaria pernambucana. Receitas dos conventos de Portugal, outras da confeitaria popular, e outras das comidas de rua que se encontra com a mandioca, e outros ingredientes da “terra”. No Recife, em carrinhos de madeira, ainda hoje são vendidos bolos e biscoitos, próximos em forma e gosto das suas fontes portuguesas. Tortas enroladas que remetem as tortas do Azeitão (Portugal), bolos verdadeiramente ancestrais; base do tão querido “bolo de rolo”, na verdade “torta de rolo”. Ainda, tão do gosto e do cotidiano das mesas do Nordeste, estão as receitas de cuscuz. Tradição da África mediterrânea, da África Magreb, que ganha interpretações com a farinha de milho, com a massa da mandioca , com o leite de coco, e com muitos outros acréscimos nas receitas. Gilberto tem o desejo de marcar os territórios dessas matrizes do continente africano; ora afro-islâmica, ora das “Costas” – ocidental, austral, oriental –, e assim busca mostrar, preferencialmente pela comida, essas chegadas e essas formas de civilizar o Brasil.

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Sabores ibéricos em Casa-Grande & Senzala

Gilberto valoriza uma ancestralidade de sabores decorrentes da Península Ibérica, e assim louva Portugal com todos os sabores reunidos de um povo globalizado pelas grandes navegações. Tudo está em um Portugal ibérico com territórios africanizados pelo Magreb afro-islâmicos. Do norte da África chegaram também civilizações do Mediterrâneo, a civilização da “oliva”, do “vinho”, do “queijo”. Pelas rotas das especiarias, Portugal retoma as rotas romanas que o levam para o Oriente, para a África das costas do Atlântico e do Índico; e ainda amplia as suas relações, e comércio, nas Américas e o no Caribe. Com todos estes elementos de civilizações do Ocidente e do Oriente, chegam novas construções de sabores, de técnicas culinárias, de objetos de cozinha e de serviço à mesa; e receitas, muitas dos cardápios do cotidiano, e outras das festas, festas religiosas, essencialmente católicas. Embora de um rico acervo de ingredientes, de receitas, de um Portugal de além-mar, Gilberto, em Casa-Grande & Senzala, aponta para questões econômicas, e os diferentes processos sociais que fazem parte da alimentação no Brasil colônia, e diz: “Má nos engenhos e péssima nas cidades: tal a alimentação da sociedade brasileira nos séculos XVI, XVII, XVIII. Nas cidades péssima e escassa.” Gilberto, em Casa-Grande & Senzala, quer mostrar o Nordeste do século XIX sob o regime patriarcal que foi fundado no açúcar da cana sacarina, e uma análise da civilização ibérica no trópico, assim escolhe a comida para interpretar essa compreensão colonial. É importante dizer também que Gilberto mostra, com outro olhar, a “idealizada” contribuição holandesa na cozinha regional, e diz sobre o “brote”, um tipo de biscoito enquanto, talvez, uma possível “permanência” dos batavos em Pernambuco. Pois nestes momentos da “Maurícia”, passava-se fome no Recife, os soldados batavos caçavam inclusive ratos para comer. Gilberto assim louva a farinha de mandioca e tudo que chega dela, e diz: “o próprio feijão já é luxo”. A maioria dos produtos da tradição alimentar ibérica: azeite de oliva, azeitona, vinho, farinha de trigo, e queijo chegavam de Portugal. Ainda, Gilberto diz que os cardápios mais comuns do cotidiano, da subsistência, estavam baseados na farinha de mandioca e no charque. Os desenhos das mesas repletas de comidas, num cenário de prataria, de sedas, de festas magníficas, estão, na maioria, em leituras ingênuas sobre estes processos econômicos e culturais sobre a comida possível no Nordeste do Brasil colônia. Contudo, Gilberto que exibir as mesas de celebrações, mesas com montes de açúcar, para indicar o poder do senhor de engenho. Sem dúvida, o açúcar é o orientador e formalizador das relações sociais. E também com o açúcar vêm as antigas receitas dos mosteiros de Portugal, que são realizadas e reinventadas nestes contextos da mandioca e das suas muitas possibilidades culinárias . Com a colonização, as referências das culturas de Portugal estão no idioma e na comida. Comida formada a partir de receitas moçárabes, de base muçulmana, como mostra “Arte da Cozinha” (1692) de Domingos Rodrigues: carneiro mourisco, galinha mourisca, entre outros. Também há a comida dos mosteiros medievais. Espaços consagrados às “regras” de alimentação e do “jejum”, uma orientação para a falta de comida, uma santificação para os períodos de comida rara, mesmo em Portugal. Assim, os cardápios e as receitas especiais, que se juntam às tradições populares e as “cozinhas” sofisticadas dos moçárabes na Península Ibérica, vão construindo uma “cozinha” de formação tropical, e que recorre também aos imaginários medievais dos conventos e mosteiros. Ordem dos Agostinhos, dos Beneditinos, das Carmelitas, dos Jesuítas, entre outras. Sabores “santos” que chegam às receitas de: morangos no vinagre, caldo de acelgas, bispos, leite frito, natas imaculadas, frango no vinho da missa, arroz com leite, entre muitas, muitas outras receitas conventuais. E alguns doces: amorzinhos de noviça, argola de abadessa, barrigas de freira, fatias celestiais, queijinhos do céu. E alguns exemplos que trazem os “pontos do açúcar”: de pasta, de fio, de cabelo, de pérola, do assoprado, de espadana, de rebuçado ... Tudo traz os encontros e as criações, pois, “navegar” e principalmente comer é preciso. Invenções nas cozinhas e descobertas à mesa.  

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Casa-Grande & Senzala – A comida como método social em Gilberto Freyre

  Gilberto se propõe a revelar “o seu” Nordeste ao leitor. Um Nordeste orientalizado a partir das matrizes lusas com os seus encontros com a China, Índia, Japão; e nas tradições moçárabes e judaicas. Um Nordeste da Zona da Mata de Pernambuco. Sim, Pernambuco como um foco possível e preferencial de Gilberto. O livro Casa-Grande & Senzala é também um depoimento vivencial de Gilberto, que mistura endoetnografias nos cenários do Recife. Assim, ele traz leituras e experiências familiares; também dá interpretações sentimentais; e ainda busca os sinais de uma região orientada pelo patriarcado que nasce na cana sacarina. É uma obra para muitas interpretações, para ser revisitada apontando-se para as cozinhas como experiências formais da identidade do brasileiro. Por ser um livro de vocação sensorial, sugiro ler algumas páginas ao sabor de um bolo de massa de mandioca, ou bebendo um boa cachaça, para que se possa assim ter um encontro hedonista ao gosto de Gilberto. Ele se revela hedonista quando traz de Ruth Benedict os seus conceitos de “apolíneo” e de “dionisíaco”. São encontros desejáveis e necessários ao tema açúcar, um tema nem sempre tão “doce”. Entender ainda que Gilberto tem suas preocupações literárias e estéticas com Casa-Grande & Senzala. Ele relata ambientes, festas, indumentárias, comidas, processos culinários, rituais de comensalidade. Gilberto tem um olhar iconográfico dominante, e recorre ao desenho e a pintura como processo de criação e de representação cultural. Estes imaginários estão nos textos, e se pode dizer que Casa-Grande & Senzala é um livro “cinematográfico”. E com este desejo visual, Gilberto mostra o melhor deste livro. Tudo acontece em contexto ecológico, na Mata Atlântica e nos canaviais, temas que mais tarde são aprofundados no livro Nordeste de Gilberto. Esta sociedade do século 19, exemplar em Casa-Grande & Senzala, é ampliada também em Sobrados e Mocambos, com um olhar mais urbano sobre a civilização que nasce do açúcar. Casa-Grande & Senzala mostra as histórias das “casas” e das pessoas que vivem nestas casas. Relata religiosidade, maneiras de fazer a comida, escolher os ingredientes; as muitas receitas de um Portugal já globalizado com as “grandes navegações” que aproximaram o Oriente do Ocidente. Esta obra de Gilberto mostra as festas, os rituais do plantio e da colheita da cana sacarina; os encontros de portugueses africanizados pelo Magreb, de povos nativos, de milhares de africanos da Costa, que revelam novos gostos e interpretações de sabores que se espalham pelas cozinhas, pelas mesas, num Brasil à boca. Gilberto quer apresentar um lugar possível do “trópico”.  Mostrar uma civilização onde o poder formal está no mando masculino. Contudo, este poder está também nas cozinhas, territórios consagrados ao mando feminino. Cozinhas na “Casa-Grande”, lugar onde as relações sociais são formalizadas na intimidade de espaços geradores de comidas, de um poder que se projeta no ato da alimentação. Gilberto revela os rituais das alimentações, inclusive dos “santos”, que são íntimos nestas relações sociais já à brasileira. O Menino Deus, para adoração e para o convívio com as crianças da “casa”, torna-se tão próximo que parece estar também se lambuzando de geleia de araçá. Outros doces são marcantes e, em especial, os “bolos”, tema que fundamenta o seu livro Açúcar, também dos anos 1930. Gilberto mostra o doce como um preparo feminino, marcado pela mulher lusa como uma atividade especial, pois o doce tem um preparo que vai muito além do açúcar. É um preparo de memórias ancestrais da história colonial lusa. O termo “doce” valoriza e qualifica aspectos sociais como, por exemplo, “você é um doce”; “te dou um doce”; tudo mostra o açúcar como formador de laços sociais, e isso também é retratado em Casa-Grande & Senzala. As referências dos sabores, a nova forma para se construir o paladar, o reconhecimento do que é o gosto gostoso, daquilo que chega de Portugal com os “gostos do mundo”, e se misturam com este Brasil de mandioca, de peixes, de milho, de pimentas frescas, e de muitos outros produtos da “terra”, produtos nativos. Gilberto, em Casa-Grande & Senzala, expõe uma sociedade que se revela à mesa. É assim que ele quer interpretar o brasileiro: “a partir da comida”. Casa-Grande & Senzala é uma construção formal de análise que está na tese Social life an Brazil in the middlle of the 19th Century para o título de Master Artium ou Master of Arts, Columbia University, 1922. Com certeza, em Gilberto, estão todos os sentimentos do gourmet, do antropólogo e do artista, todos reunidos na sua maneira pessoal de gostar do Recife. * Raul Lody é antropólogo.

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