“Caminhamos para algo novo na literatura”
Ronaldo Correia de Brito recebeu os jornalistas Cláudia Santos e Rafael Dantas com uma crise de blefarite (inflamação nas pálpebras que provoca lacrimejamento). Médico de profissão, além de escritor, ele intuía que “seu pranto” devia estar relacionado à maneira pouco acolhedora como os profissionais têm tratados os pacientes. Também lamentou que smartphones estejam levando as pessoas a lerem menos. Mas contou entusiasmado sobre os novos rumos da literatura com o advento das edições cartoneras, que fazem produção independente de livros de forma artesanal. E comemorou o sucesso de mais de três décadas do espetáculo Baile do Menino Deus, que é tradicionalmente encenado no Recife em dezembro, e em comunidades, escolas e teatros em todo o País. Escritor premiado, com obras traduzidas para vários idiomas, Ronaldo conversou com a equipe de reportagem da Algomais no seu amplo apartamento, decorado com obras de arte e com uma varanda que lembra a das casas de fazenda do sertão cearense onde nasceu. Você nasceu no Sertão cearense e quando veio para o Recife? Nasci na cidade de Sapuí, meu pai era criador de gado e plantador de algodão. Quando eu tinha 5 anos, ele percebeu que eu tinha muito interesse por leitura e decidiu que o campo não tinha mais nada a oferecer para a nossa geração e mudou-se para o Crato. Aos 17 anos, em 1969, venho para o Recife para fazer o vestibular para medicina. Ou seja, ano que vem vai fazer 50 anos que eu moro aqui. Já até recebi título de cidadão recifense. Cheguei aqui um ano depois da decretação do AI-5. Havia um clima de muita tristeza e repressão na cidade. Eu era um estudante bastante modesto. Passei no vestibular na Federal em 1970. A Faculdade de Medicina era extremamente repressiva, a Comissão da Verdade, inclusive, apurou que duas universidades brasileiras tinham aparelhos repressivos montados, uma delas era a UFPE. No meu romance Estive lá fora faço essa acusação sem provas. Como essa repressão se expressava na prática? Por exemplo, nosso professor de anatomia interrompia a aula e dizia: “se vocês não se comportarem vou chamar o 4º Exército e vão todos em cana”. Ele se chamava Bianor da Hora e era irmão de Abelardo da Hora. Imagine! Eu morava na Casa do Estudante Universitário que tinha 196 alunos homens. A gente sabia que na casa havia alunos infiltrados para delatar. Em 1969 foi quando mataram o padre Henrique e balearam o estudante Cândido Pinto, que era irmão de um estudante de engenharia, que depois ficou muito ligado a mim, foi meu vizinho. Acompanhei Cândido Pinto até ele morrer em consequência da paraplegia que o vitimou. Mas havia um lugar onde se respirava: o Departamento de Extensão Cultural. Um lugar maravilhoso, coordenado e dirigido por Ariano Suassuna, frequentado por Gilvan Samico, Francisco e Débora Brennand, Roberto da Cunha Melo, poetas, escritores, músicos. Fora isso, éramos estudantes ousados, vivíamos tempo da contracultura e não era fácil usar sandália de pneu, cabelo encaracolado grande, camisa de listra de malha com o umbigo de fora e uma calça tomara que caia mostrando os pentelhos (risos). Era um tanto exótico, mas eu era um bom estudante. Por que você optou por medicina? O que é que se ia fazer para se viver? Não se podia viver de poesia, nem de música naquele tempo. Ia-se viver do direito, da engenharia ou da medicina. Eu gostava de medicina. Acho que foi uma das melhores escolhas que fiz na minha vida. Não seria o escritor que sou, não teria chegado à literatura que cheguei se não fosse médico e acho que igualmente não seria o médico que fui se não fosse um intelectual, um artista, uma pessoa com alma e vida de artista. Qual sua especialidade? Sou clínico, sou de uma geração que tive a sorte de ter sido formado por pessoas que tinha o pensamento moderno de formar médico clínicos, os chamados médicos de medicina interna, preocupados em olhar e ouvir o doente, em tocá-lo. Eu digo que me torno médico quando passo a trabalhar com essas pessoas que são o famosos Dr. Chicão, e Vítor Spinelli e a frequentar os hospitais) Agamenon (Magalhães), Barão de Lucenan e Getúlio Vargas, de cuja residência fui chefe alguns anos, e sobretudo quando conheci minha mulher, Belina Brandão, com quem estou há 43 anos, e que era uma médica extraordinária, era minha preceptora no internato do Barão de Lucena. Ela é quem me encaminha mesmo para a medicina, que mostra o que é medicina. Onde é que a medicina se encontra com a literatura? Elas se encontram a todo instante. Sempre fui preceptor de médicos residentes e sofro muito em perceber o quanto a medicina se afastou do sentido grego de arte da cura. A medicina se faz principalmente olhando, ouvindo, tocando o paciente e perguntando: por que você sofre? O que eu posso fazer para aliviar o seu sofrimento? São perguntas muito simples que foram abandonadas e são os princípios da medicina hipocrática. Digo que a minha blefarite (inflamação das bordas das pálpebras que provoca lacrimejamento), meu pranto, vem de muito tempo com a própria medicina. Há uma grande tradição de escritores médicos, um dos que me marcaram profundamente foi Anton Tchecov. Ele costumava dizer que a medicina era a sua esposa e a literatura e o teatro eram sua amante. Guimarães Rosa, que também era médico, disse que três coisas o fizeram ser um escritor: a convivência com o povo, a vivência da Segunda Grande Guerra e a medicina. O meu último livro Dora sem véu há um personagem que é paciente e se queixa do médico que não o escuta. Certa vez eu estava no hospital e ouço um canto, que é arrebatador, vem das entranhas da terra, é bonito, é antiquíssimo. Que canto é esse? E eu saio procurando a voz, e chego numa enfermaria que tem duas mulheres, uma é uma negra, de mais de 80 anos, a outra, de uns 60, com uma bíblia. A negra é quem cantava. Eu digo:
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