Oncinha pintada e o mínimo ético - Revista Algomais - a revista de Pernambuco
Ninho de Palavras

Ninho de Palavras

Bruno Moury Fernandes

Oncinha pintada e o mínimo ético

Você entra no banheiro da biblioteca da universidade para satisfazer corriqueiras necessidades e encontra uma nota de R$ 50, no chão, estendida ao lado da privada. O local está fechado, obviamente. Ali, na solidão da intimidade, você e a onça. E agora? O que fazer?

Como primeira opção, você poderia se dirigir à coordenação da biblioteca ou ao setor de achados e perdidos, interpelar o funcionário, dizendo: “Senhor, com sua licença, acabo de achar um animal que anda em extinção na minha carteira, esta onça. Estou a devolvê-la, por favor, tente localizar o proprietário deste pobre animal”. Como segunda opção você poderia prender a onça na jaula do seu bolso, afinal ninguém está vendo, não é mesmo!? Há uma terceira opção: fazer de conta que não viu a fera e dar as costas, evitando tentações, dúvidas, problemas e, sobretudo, tornando desnecessária a tomada de decisão. Ou seja, acovardando-se, você poderia sair correndo antes que a onça abocanhasse sua consciência. E se você for esquerdista anarquista, puto da vida com o estrago que o capitalismo direitista causou ao mundo, ainda há a opção de limpar suas partes íntimas com o pelo felpudo da felina pintada, jogando na privada todo o ódio que emana da sua consciência político-econômica, afinal dinheiro é mesmo uma merda, o mal do mundo.
Ocorre que você permanece em plena dúvida. Sentado ao trono, cotovelos nas coxas, mãos no queixo, como na famosa pose da escultura de Rodin, você pensa. Pensa. E pensa. Fecha os olhos, lembra dos ensinamentos do pai e da mãe. “Menino, isso não está certo”. “Não faça isso”. “Olhe, Deus tá vendo!” “Deus castiga!” Você chega a escutar a voz da sua vó, dizendo: “Nada é melhor do que o sono dos justos”. Você pensa em inúmeras coisas ao mesmo tempo, desde o episódio do Sítio do Pica Pau Amarelo, onde Emília, Narizinho, Visconde e todos os outros procuravam pela onça pintada, até a palestra do Leandro Karnal com seus ensinamentos filosóficos sobre ética.
O tempo passa. Você sentado ali, suando frio. Então escuta o barulho da porta e os passos de um alguém adentrando ao banheiro. “Toc-toc” e uma voz rouca: “Com licença, você viu se deixei cair do bolso da minha calça uma nota de R$ 50?”. Pronto, você está a salvo! O dono do animal apareceu. “Deixe-me ver se está por aqui”, você responde, disfarçando a verdade de quem esteve trancafiado amorosamente com a onça, na mesma jaula fedorenta, durante a eternidade daqueles minutos anteriores. “Ah, sim, está aqui”. E entrega a felina por debaixo da porta, com sua face virada para cima, enquanto as costas se arrastam pelo límpido e brilhoso piso de porcelanato. Naqueles milésimos de segundo você mira os olhos da onça, chegando a sentir as garras a segurar suas mãos, como num balé da triste despedida. Adeus, oncinha pintada!
Titubear é humano, mas com ética não se pode transigir. Aquilo que você faz quando ninguém está vendo chama-se ética. Quando há dúvida entre o certo e o errado é porque já se perdeu a dignidade. É porque a ética já deixou de ser um valor. Ainda existem pessoas honestas no mundo. Tudo bem, estão em extinção, assim como a onça. Mas são nelas que devemos nos espelhar. Em tempos de crise de valores, aplausos para quem, ao menos, devolve aquilo que não lhe pertence. É o mínimo ético sendo apreciado.

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