Em artigo, o jornalista Du Dias explica a origem e as motivações do Dia Mundial Sem Carro, neste 22 de setembro. Um dos motivos é o clima, que dá sinais de fadiga
(Do Mobilize Brasil)
Era o ano de 1956 quando Israel, com o apoio da França e do Reino Unido, declarou guerra ao Egito, após o país que liga o nordeste da África ao Oriente Médio nacionalizar o Canal de Suez, importante rota de comércio da região. Foi assim que se iniciou a Guerra de Suez, que só foi encerrada após pressões de Estados Unidos, União Soviética e das Nações Unidas para a retirada de tropas invasoras.
A esta altura, você deve estar se perguntando o que um conflito armado no final dos anos 1950 tem a ver com o Dia Mundial Sem Carro. Não foi a guerra propriamente dita, mas a crise de abastecimento de combustíveis em diversos países europeus, decorrente do conflito no canal de Suez, que levou, por exemplo, a Bélgica e a Holanda a racionar o uso de combustíveis e proibir a circulação de automóveis aos domingos.
Naquela época, estes países também sofriam severamente com a poluição atmosférica e o aumento das mortes no trânsito, inclusive de crianças, causadas pela popularização do automóvel. O embrião do Dia Mundial Sem Carro estava nascendo e se reproduziria em países como a Dinamarca e a Suíça, que também restringiram o uso do carro durante a crise do petróleo de 1973. Estes eventos foram transformadores para alguns destes países, que a partir de uma medida emergencial para enfrentar uma crise econômica, revolucionaram para sempre seus padrões de mobilidade.
As experiências de enfrentar as crises decorrentes da guerra, da escassez de petróleo e suas consequências a partir da restrição do uso do carro haviam sido relativamente bem sucedidas na Europa, mas a redução do uso de automóveis já vinha ganhando força nos Estados Unidos desde os anos 1950, quando moradores de Nova York protestavam contra a extensão da 5ª Avenida, uma das mais importantes da cidade. A vitória dos nova iorquinos nas manifestações contra a obra que cortaria um importante parque da cidade ao meio (a Washington Square Park), é frequentemente creditada à jornalista e urbanista Jane Jacobs, que naquela época já denunciava as consequências catastróficas para o meio urbano, do uso irrestrito dos veículos individuais motorizados.
Bem antes disso, no início do século 20, cidades dos Estados Unidos realizaram intensas campanhas para evitar a entrada de automóveis em suas ruas, até então muito ocupadas por pessoas de todas as idades. A indústria reagiu: uma intensa campanha foi realizada para "organizar" o trânsito, limitar os espaços destinados aos "pedestres" e liberar a circulação dos carros. E assim, a vida nas cidades foi inteiramente transformada, conta Peter D. Norton, historiador da Universidade de Virginia e autor de Fighting Traffic: The Dawn of the Motor Age in the American City.
Mas, no final do século, quando as cidades já estavam entupidas e intoxicadas de carros, os ensinamentos de Jane Jacobs, Jan Gehl e Jeff Speck, entre outros, ganhavam popularidade e conquistaram corações e mentes também no velho continente quando, em outubro de 1994, o economista Eric Britton fez um importante discurso durante evento sobre cidades acessíveis na Espanha, conclamando a sociedade a adotar medidas restritivas severas para o uso de automóveis. Nos anos seguintes ao chamamento de Britton, há registros de dias livres de carro promovidos extraoficialmente em cidades da Islândia, do Reino Unido e da França, entre outros.
Em 1996, um grupo de ativistas holandeses começou uma campanha por dias livres de carro com abrangência nacional para aquele país. O grupo organizou mensalmente manifestações informais nas ruas, quando paravam os carros e ocupavam as vias com festas, pic-nics, brincadeiras para as crianças, manifestações artísticas e pinturas. Essa estratégia seria utilizada posteriormente em manifestações pacíficas no mundo todo, inclusive em São Paulo, quando movimentos sociais (o Mobilize estava lá!) pressionaram a prefeitura municipal para fechar a avenida Paulista para os carros aos domingos.
O que é o "dia sem carro"?
O primeiro dia sem carro celebrado por um país oficial e nacionalmente, no entanto, se daria na Inglaterra, que foi seguida pela França, em 1997. Foi só a partir do ano 2000 que se estabeleceu o dia 22 de setembro como Dia Mundial Sem Carro, a partir de uma campanha que se estenderia oficialmente por todo o continente europeu. Hoje celebrado em cidades do mundo todo, o Dia Mundial Sem Carro é uma oportunidade de refletir sobre os prejuízos sociais, ambientais e econômicos da cultura do carro e seus impactos nos territórios. Cada cidade adota medidas distintas, sempre tentando conscientizar a população de que outras formas de deslocamento não são apenas possíveis, como também eficientes, baratas e sustentáveis.
Há cidades que restringem o uso do carro em algumas vias, outras fazem campanhas de conscientização e em alguns casos, ampliam a oferta de transporte público e coletivo. Na cidade de São Paulo, são realizadas atividades de conscientização sobre o uso excessivo de automóveis no dia 22 de setembro desde o ano de 2003, com pedaladas/bicicletadas; interlocuções com o poder público municipal; fechamento de vias para os carros e atividades culturais, quase sempre promovidas por movimentos sociais ou decorrentes da pressão realizada por eles. A partir de 2010, os dias sem carro passaram a ser celebrados em diversos estados do Brasil.
Mas, o carro é mesmo um vilão?
Se analisado individualmente, o automóvel não parece ser um grande problema: ao contrário, a facilidade e o conforto de se deslocar em um carro são sedutoras; a crescente tecnologia e segurança para os usuários também não ficam atrás. E não podemos deixar de lembrar que a indústria automobilística também é responsável pela geração de milhões de empregos e de movimentar fortemente a economia. Mas então, porque os carros hoje são vistos como ameaças?
A resposta tem a ver com o uso que se faz dos automóveis. Além das altas velocidades praticadas nas vias urbanas, provocando acidentes e mortes que poderiam ser evitados, os custos de implantação e manutenção de vias, quase sempre congestionadas, também são elevados. O tempo gasto nos deslocamentos de carro representa enorme prejuízo financeiro em uma sociedade mercantilizada; a poluição causada pelos motores a combustão e o espaço desproporcional que os veículos motorizados individuais ocupam no viário, também não são desprezíveis. Soma-se a isso tudo a baixa eficiência desse modo de transporte, cuja velocidade média nos horários de pico nos grandes centros não ultrapassa a velocidade do voo de uma galinha.
Infelizmente, para promover a indústria, as cidades tiveram que ser adequadas ao uso do automóvel, tornando-se lugares de passagem e sacrificando a qualidade de vida de seus moradores, bem como a democratização do espaço público. O carro se tornou o símbolo de uma sociedade individualista, por isso precisamos priorizar a mobilidade ativa, o transporte público, voltar a valorizar os espaços coletivos e os encontros, sem os quais a própria humanidade perderia o sentido. Promover e celebrar dias sem carro é, portanto, resistir à irracionalidade do uso desmedido do automóvel, lembrar que um outro modelo de cidade, mais humana e aprazível, é possível e desejável.
Então, que tal deixar o carro na garagem?
*Eduardo Dias (Du Dias) é caminhante, usuário da bicicleta e do transporte público, jornalista e colaborador do Mobilize Brasil.