"Quando percebi, o Rio Capibaribe não estava morto"
*Por Francisco Cunha Como natural do Recife, nascido e criado em bairros que não eram contíguos ao Rio Capibaribe (Prado e Espinheiro), minha relação com o principal curso d’água da cidade sempre foi meio protocolar, admirando-o desde o Cais da Jaqueira, do Centro da Cidade ou de cima das pontes, praticamente os únicos locais de onde poderia ser visto à distância. Isso porque, ao longo do seu percurso de quase 15 quilômetros dentro do Recife, ele estava oculto no fundo dos lotes e das quadras, passando quase imperceptível para quem trafegava pelas ruas e avenidas da cidade. Claro que havia uma exceção: quando das chamadas “cheias”, o rio saia do seu leito e invadia a planície do Recife, transformando a área inundada numa grande lagoa cheia de prédios meio submersos. Uma espécie de Veneza em tempo de super maré. Mas, então, já não era mais o Capibaribe senão uma versão superinflacionada e irreconhecível. Quando comecei a me interessar pela história da cidade, não conseguia entender o porquê deste percurso oculto já que, durante uma boa parte da existência do Recife, a crônica histórica dava conta de que o rio tinha sido a sua principal via, restando às estradas de terra (de João de Barros, do Encanamento, das Ubaias, de Dois Irmãos, do Arraial e várias outras) o papel secundário para o trânsito de animais e pessoas a pé ou, eventualmente, puxando carroças. Depois, me aprofundando mais ainda no estudo da história, entendi que essa dinâmica começou a mudar com a chegada dos trilhos à cidade, na segunda metade do Século 19, com o pioneiro trem urbano a vapor, a Maxambomba (corruptela da expressão inglesa machine punp). Com o trem passando pelas principais vias da cidade, em seguida, com os bondes (inicialmente puxados a burro, depois elétricos) e, mais em seguida ainda, com a chegada dos carros e do calçamento, o principal ponto de atração passou a ser o antigo “fundos” dos imóveis onde, agora, passavam os bondes e os veículos automotores, com os pedestres relegados às bordas da via (as “calçadas”). Com isso, o Rio, como antiga via, passou para os fundos dos lotes e “desapareceu” da cidade. E como todo desaparecido, foi virando progressivamente local do indesejável, de onde se colocar esgoto e lixo, sem “ser visto”. O resultado foi que, ao longo do Século 20, o Capibaribe foi ficando cada vez mais invisibilizado e “sujo”, a ponto de se implantar o entendimento de que o Capibaribe estava “morto”, sufocado pela poluição de todo tipo. Pois bem, tinha essa ideia formada na minha cabeça quando, há quase duas décadas, comecei a fazer caminhadas sistemáticas pela cidade. E dentre as inúmeras revelações que tive, sem dúvida a principal foi a redescoberta do Capibaribe. Fui encontrando com ele no fim das ruas e no fundo das quadras, sem conseguir passar para o outro lado. Então, com uma diferença de antes: encontrei as margens vegetadas pelo mangue, coisa que não existia antes quando elas eram completamente “nuas”, sem qualquer vegetação. Mas, para todos os efeitos, o rio estava “morto”, cheio de esgoto e lixo, uma vez que nem as capivaras tinham aparecido ainda. Com as caminhadas, uma das descobertas que eu tinha feito foi a do Baobá de Ponte D’Uchoa, encurralado por um muro na beira do Rio, um monumento vegetal que não entendia porque ainda não tinha sido incorporado à cidade, já que muito pouca gente sabia de sua existência. Por conta disso, toda as vezes que passava pela Avenida Rui Barbosa, fazia questão de visitá-lo e apresentá-lo a quem estava comigo. Numa dessas vezes, cedo da manhã, chegando perto da beira do Rio, vimos, no final da rua sem calçamento, o que nos pareceu ser uma tartaruga, com certeza fugida de algum quintal das redondezas. Mas, qual não foi a surpresa, com a nossa aproximação e com as fotos que fizemos, o bicho se espantou e “correu” para a margem, em busca do Rio, despencou do barranco que existe no local e ficou de cabeça para baixo. Descemos, viramos a tartaruga que, quando se viu novamente sobre as quatro patas, partiu célere e mergulhou no Rio, justamente no local de onde existia um cano jogando esgoto em profusão. Voltamos um tanto espantados com o ocorrido e encontramos no lugar, onde o bicho estava, um buraco que deu a impressão de ter sido feito para colocação de ovos. Depois, consultado especialistas descobrimos que não se tratava de uma tartaruga mas de um cágado d’água que tinha escolhido o local para fazer sua desova. Mas, mais importante do que tudo, tivemos uma prova concreta de que o Rio não estava “morto”. Pesquisando um pouco mais descobrimos que o fato de a água salgada do mar entrar, quando da maré cheia, duas vezes ao dia na planície, indo até o bairro da Várzea, isso promove uma espécie de “tratamento” da água do Rio, diminuindo a poluição e aumentando a oxigenação. Isso torna o Rio “vivo” na planície recifense. De fato, depois desta descoberta, começamos a perceber que a vegetação das margens tinha criado uma espécie de “corredor ecológico” desde a floresta do oeste até a foz no leste. E começamos a “ver” capivaras, pássaros estranhos, peixes, jacarés e, até, uma jiboia como citado na reportagem de capa desta edição da revista Algomais. Essa “descoberta” turbinada pelo estudo realizado pela pesquisa Parque Capibaribe e pela ocupação urbanizada das margens (como o Jardim do Baobá, a Praça Otávio de Freitas no Derby, o Parque das Graças, o Cais da Vila Vintém), propiciou a ampliação da visão e da pertinência do Capibaribe na vida dos recifenses. Falta agora uma ampla campanha para despoluir o Rio, retirando o esgoto e o lixo dele para que a sua vida seja potencializada e, quem sabe, até o aniversário de 500 anos do Recife em 2037, possamos voltar a tomar banho nele, como os recifenses faziam até quando os veículos sobre trilhos e motorizados começaram a passar no fundo dos lotes... *Francisco Cunha é consultor e sócio da TGI
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