Leonardo Dantas Silva – Página: 6 – Revista Algomais – a revista de Pernambuco

Leonardo Dantas Silva

O Engenho de Joaquim Nabuco

Neste arruar pelos caminhos de Pernambuco, eis que sou levado às terras do Engenho Massangana, no município do Cabo de Santo Agostinho, onde, entre 1849 e 1857, viveu o menino Joaquim Aurélio Nabuco de Araújo, que, nascido no sobrado 119 da atual Rua da Imperatriz, no Recife, aqui viveu os seus primeiros anos. Batizado em 8 de dezembro do mesmo ano, na capela de São Mateus, do Engenho Massangana, recebeu na pia batismal o nome de Joaquim Aurélio, em homenagem ao seu padrinho, Joaquim Aurélio Pereira de Carvalho, casado com dona Ana Rosa Falcão de Carvalho, de quem receberia os cuidados maternos durante os seus primeiros 8 anos de vida. Essa sua primeira infância foi vivida nessas terras, convivendo com a escravidão africana e a condição de vida de semovente, a que era submetido o indivíduo nascido de útero escravo no Brasil. O bastante para lhe marcar o destino, como ele bem declara em Minha Formação (1909): “Massangana ficou sendo a sede do meu oráculo íntimo: para impelir-me, para deter-me e, sendo preciso, para resgatar-me, a voz, o frêmito sagrado, viria sempre de lá” Em 1857 o menino é surpreendido com a morte de sua madrinha, Ana Rosa. A morte de sua protetora fez com que o levassem para a casa paterna, no Rio de Janeiro. No seu livro de memórias, o capítulo Massangana vem marcar toda a vida literária de Joaquim Nabuco, fora ele o divisor de águas, entre a infância, cercado de escravos e sentindo nos pés o bagaço da cana que saía das moendas do engenho. Mas, afinal, o que seria Massangana? Nos dicionários consultados, desde o vetusto Antônio de Moraes Silva (1813) até o clássico Laudelino Freyre, além dos atuais Aurélio Buarque de Holanda e Antônio Houaiss, não se encontram quaisquer registros. No Dicionário Lello (Porto, 1959) aparece Massangano, com a designação de “posto administrativo do concelho de Cambambe, Angola”; servindo ainda para denominar “mau clima; terrenos pantanosos”. Palavra de origem africana, portanto, que chega até nós através de escravos angolanos para cá trazidos. Consultando o Dicionário Kimbundu-Português, de A. de Assis Júnior (Luanda, s/d), observamos que o vocábulo na sua forma masculina, Massanganu, serve como designativo de “confluência; foz. Lugar onde dois rios se juntam num só: Massanganuma Lukala ni Kuanza”; serve assim para denominar o “antigo concelho (divisão administrativa de distrito; parte de um distrito) da freguesia de Nossa Senhora da Vitória, constituindo hoje a área e sede do posto deste nome, concelho de Cambambe (Dondo), distrito de Quanza-Norte, província de Luanda, compreendida na língua de terra formada pelos rios Lucala e Quanza, na margem direita deste rio”. Tudo bem de acordo com a denominação do Engenho Massangana, em cujas terras se unem os riachos Massangano e Algodoais, que juntos formam o rio Suape, no Cabo de Santo Agostinho. Mas por que Massangana e não Massangano? O vocábulo Massangana, como designação do engenho da infância de Joaquim Nabuco, já se encontra presente em documentos do século 18. Ao instituir o Morgado de Nossa Senhora da Madre de Deus no Cabo de Santo Agostinho, em 28 de outubro de 1580, o vianês João Paes Barreto deu início à colonização da sesmaria que lhe fora doada pelo primeiro donatário Duarte Coelho (1535-1554) nela levantando dez engenhos, dentre os quais o Massangana. O mesmo engenho aparece como pertencente àquele morgadio, quando da instalação da Vila do Cabo de Santo Agostinho, em 18 de junho de 1812. Criada por Alvará Régio de 27 de julho de 1811, a vila teve como seu primeiro capitão-mor o sétimo e último morgado Francisco Paes Barreto, futuro Marquês do Recife, que veio a falecer em 26 de setembro de 1848. Massangana aparece, ainda, em anúncio do Diario de Pernambuco, no qual Dona Ana Rosa Falcão de Carvalho comunica o falecimento do seu escravo, Elias, episódio também anotado por Joaquim Nabuco em seu livro de memórias, ao transcrever parte da carta de sua madrinha comunicando o desenlace ao seu pai, Conselheiro Nabuco de Araújo… “o meu Elias o qual fez-me uma falta sensível, tanto a mim como ao meu filhinho…”. O vocábulo, que na língua kimbundu serve para designar “confluência, foz; lugar onde dois rios se juntam num só”, a exemplo de tantos outros de origem africana, como maximbombo (Moçambique) que em Pernambuco veio a ser usado como maxambomba, assumiu entre nós a forma feminina pura e simplesmente, sem qualquer interferência de qualquer erudito. Deve-se tudo, como diria o poeta Manuel Bandeira, à “língua certa do povo/ porque é ele que fala o gostoso português do Brasil” …. O Engenho Massangana, mais recentemente era propriedade da Usina Santo Inácio, tendo sido desapropriado pelo Incra que o transfere em comodato para a Fundação Joaquim Nabuco, surgindo assim essa Casa Museu. A simpática casa senhorial encontra-se mobiliada com peças do mobiliário pernambucano da segunda metade do século 19, apresentando uma exposição sobre a vida e obra do grande abolicionista, réplicas de retratos e pinturas das suas várias fases, tudo acompanhado de guias especialmente treinados que levam o visitante a conhecer esta parte de nossa história. Nessa exposição, ali montada por técnicos daquela Fundação, o primeiro senão… Lá está escrito que o nome Engenho Massangana foi uma criação do próprio Joaquim Nabuco, ao escrever o seu livro “Minha Formação” (1911), pura inverdade como já comprovamos anteriormente… pedindo, urgentemente, que o texto do primeiro painel seja reescrito pelos responsáveis (!) Ao seu redor as casas da senzala aparecem em excelente conservação e, na colina ao lado, a igrejinha de São Mateus está a dominar a paisagem, tendo no seu interior a imagem de seu padroeiro, presenteada pela senhora Vivi Nabuco, neta do próprio Joaquim Nabuco, depois de tomar conhecimento do desaparecimento da escultura original (!).

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O Engenho Poço Comprido

O engenho de açúcar foi, desde os primórdios da colonização, uma espécie de célula formadora da civilização que se implantou com a cultura do açúcar em terras brasileiras. Confirma Antonil, in Cultura e Opulência do Brasil por suas drogas e minas (1711), a existência de dois tipos de engenho: o engenho real, para agricultores de grandes cabedais (posses) e as engenhocas, um tipo de fábrica de menor proporção, necessitando o primeiro de cerca de 150 a 200 escravos. O engenho real, tão bem representado em quadros e desenhos assinados por Frans Post (1612-1680), era movido a água e sua produção chegava a 4000 pães (formas) de açúcar, incluindo as canas moídas de sua propriedade e as dos lavradores sem engenho. Num só engenho real estariam reunidos os mais diferentes profissionais, todos indispensáveis para o sucesso do empreendimento. Daí se fazer necessário: escravos de enxada e foice, no campo e na moenda; os mulatos, mulatas, negros e negras do serviço da casa ou em outras partes, barqueiros, canoeiros, calafates, carpinas, carreiros, oleiros, vaqueiros, pastores e pescadores; um mestre de açúcar, um banqueiro (seu substituto), um contra banqueiro, um purgador, um caixeiro (no engenho e outro na cidade), feitores, um feitor-mor e o capelão. Para Antonil, “ser senhor de engenho é título a que muitos aspiram, porque traz consigo ser servido, obedecido e respeitado por muitos. E se for, qual deve ser, homem de cabedal e governo, bem se pode estimar no Brasil o ser senhor de engenho quanto proporcionadamente se estimam os títulos entre os fidalgos do reino. Porque engenhos há na Bahia que dão ao senhor quatro mil pães de açúcar e outros pouco menos com açúcar obrigado à moenda, e cujo rendimento logram o engenho ao menos a metade, como de qualquer outra que nele livremente se mói, e em algumas partes ainda mais que a metade”. Poucos engenhos de açúcar de Pernambuco conservam os traços dos tempos áureos da indústria do açúcar como o Engenho Poço Comprido, de propriedade da Usina Laranjeiras, aberto à visitação no município de Vicência, situado no Vale do Siriji, próximo à Nazaré da Mata. Esse exemplar dos primitivos engenhos pernambucanos aparece dominando a várzea. Sua casa-grande com o telhado disposto em quatro águas, é estruturada em madeira sobre colunas de alvenaria, em forma de edificação longa, cujo acesso à varanda é feito por duas escadas. Trata-se de uma construção mista, reunindo no mesmo edifício a casa-grande e sua capela. Segundo Silva Telles, “o avarandado que corre a frontaria, com estrutura de madeira, e a aparente irregularidade com que se distribuem os vãos podem sugerir certa ingenuidade na composição; entretanto, a construção é bem proporcionada e de extrema elegância”. ¹ O professor Geraldo Gomes, em seu Engenho & arquitetura, classifica as casas-grandes em nove tipos, de acordo com as linhas mestras de concepção e composição arquitetônicas. A casa-grande do Engenho Poço Comprido integra-se ao grupo I, subdivisão C, sendo conhecidas como nortenhas, por sua semelhança com as casas rurais do norte de Portugal: dois pavimentos, o superior sustentado por esteios de madeira ou por colunas de alvenaria de tijolos; paredes em pau-a-pique, alvenaria ou adobe; planta retangular; coberta de telha de barro, em quatro águas, sobre estrutura de madeira, prolongamentos eventuais de uma ou mais águas para cobrir cômodos salientes; o piso do pavimento superior em pranchas de madeira apoiadas sobre vigas, também, de madeira. A subdivisão C tem como marca a escada externa, dando acesso à pequena varanda da fachada principal e coberta por prolongamento de uma das águas do telhado da casa. Bastante notada por viajantes estrangeiros no século 19, o que pode sugerir sua frequência naquele século e no anterior. O pavimento térreo do Engenho Poço Comprido é atualmente fechado, mas é possível que tenha sido originalmente aberto e as paredes que ligam os pilares que sustentam o pavimento superior sejam de construção recente. Uma das características do tipo é a versatilidade de uso do espaço rés-do-chão.² As capelas são divididas por Geraldo Gomes em três tipos de partidos arquitetônicos. No primeiro grupo aparecem dispostas, obedecendo à disposição da nave, capela-mor e sacristia dispostas em três volumes distintos, conforme aparecem nas telas de Frans Post. No segundo grupo, ao qual se filia a capela do Engenho Poço Comprido, a nave central é ladeada por galerias laterais, onde se localizam as escadas de acesso ao coro e ao púlpito. No caso em questão, a capela aparece no mesmo paramento da casa-grande, estando ligada a esta por galerias de dois pavimentos. O pavimento superior da lateral da capela é ligado ao pavimento do mesmo nível da casa-grande contígua. Dessa forma, garantia-se o privilégio do isolamento para os familiares dos senhores de engenho que tinham acesso a cômodos no pavimento superior, nos quais assistiam os ofícios religiosos através de tribunas na nave e na capela-mor. Localizada à direita da casa, a capela “apresenta fachada vazada por uma porta de verga reta e sobreverga de pedra com óculo lobulado ao centro. O cornijamento ondulante é encimado por frontão em volutas, cruz e pináculos. Cobertura em duas águas. Há puxadas laterais com telhado escondido e, à direita, uma porta de verga reta. À esquerda, na altura das janelas do coro, vê-se uma pequena janela retangular”. ³ Trata-se, pois, de um dos raros resquícios das casas-grandes do século 18, complementada pela capela contígua e pelo edifício da fábrica com a sua chaminé. O conjunto encontra-se inscrito como Monumento Nacional, no livro das Belas Artes, v. 1, sob o n.º 468, em 21 de maio de 1962 (Processo n.º 358-T/46). 1 – TELLES, Augusto Carlos da Silva. Atlas dos monumentos históricos e artísticos do Brasil. Rio de Janeiro: MEC/Fename, 1975. p. 43. 2 – GOMES, Geraldo. Engenho & arquitetura. Recife: Fundação Gilberto Freyre, 1997 p. 47-51. 3 – CARRAZZONI, Maria Elisa (Coord.) Guia dos bens tombados. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1980.

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Luiz Gonzaga: um rei na paisagem

Luiz Gonzaga do Nascimento, conhecido pelo Brasil inteiro como o Rei do Baião, falecido no Recife, em 2 de agosto de 1989, foi considerado por muitos como o Pernambucano do Século quando da passagem do ano de 2000. Em 12 de março de 2015, quando a cidade do Recife festejava o seu 378º aniversário, a prefeitura resolveu homenagear o Rei do Baião com um imenso painel de 77 metros de altura, oito metros de largura e 3,6 de profundidade, com sua imagem em cores vivas fixada no edifício sede. A monumental obra é de autoria do muralista paulista Eduardo Cobra, conhecido internacionalmente por seus trabalhos estampados em 14 países, em cidades como Nova York, Los Angeles e Moscou. O Gonzagão, como foi intitulado o painel da Prefeitura da Cidade do Recife, é a lateral de prédio com mural mais alta da América Latina. O trabalho mostra o cantor e compositor Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, com seu chapéu de couro e sua inseparável sanfona branca de 120 baixos. Para a confecção do mural, Eduardo Kobra usou cerca de 900 latas de spray e mais de 200 galões de esmalte sintético na fachada da prefeitura. “O equipamento foi instalado na face do prédio voltada para o rio e para a Rua da Aurora. É a maior imagem exposta em uma fachada na América Latina”, diz o artista. Nos dias atuais, quem quer que aviste o edifício da Prefeitura, localizado no Cais do Apollo, em qualquer hora do dia ou da noite, vai contemplar a monumental imagem de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião emoldurada pelo céu azul do Recife e pela mansidão do Capibaribe no seu caminhar em busca do oceano Atlântico. DE EXU PARA O MUNDO. Nascido em 13 de dezembro de 1912, no dia em que a Igreja Católica Romana celebra a festa de Santa Luzia, Luiz Gonzaga do Nascimento veio a tornar-se maior divulgador da música rural nordestina. Acompanhando o pai Januário, por bailes e feiras da região, o menino foi, aos poucos, afeiçoando-se aos oitos bai­xos e aos costumes. Cenas e usanças da região que viera des­crever mais tarde. Ao completar 17 anos, fugindo de um castigo de seu pai, o menino Luiz segue para Fortaleza onde se alista no Exército. Em outubro de 1930, com a Revo­lução Liberal é transferido para a Paraíba, percorre vários Estados do Norte, viajando, logo de­pois, para o Centro-Sul aonde vem fixar-se em Minas Gerais. Já no Rio de Janeiro, em 1939, deixa o Exér­cito e vai ganhar a vida como sanfoneiro. Passou a frequentar programas de rádio e surgiu assim o convite de Ja­nuário Franca para acompanhar Genésio Arruda numa gravação na RCA Victor; onde é convidado por Ernesto Matos para participar como solista: Em 1941, Luiz Gonzaga gravou os seus dois primeiros discos 78 RPM. Deixando a Rádio Clube passou para Rádio Tamoio, com um contrato de seiscentos mil réis acrescido da proibição de cantar; tão somente instrumentista. A sua primeira gravação como cantor veio acontecer em 1943, na mazurca Dança Mariquinha, feita de parceria com Miguel Lima. No ano seguinte deixa a Rádio Tamoio, passando para o cast da Rádio Nacional, onde Paulo Gracindo o apelida Luiz “Lua” Gonzaga, numa referência ao rosto redondo. Em 1945, quando do final da Segunda Guerra Mundial, Gonzaga com­põe com Miguel Lima o calango Dezessete e setecentos. No mesmo ano e com o mesmo parceiro, compõe Penerô xe­rém e a mazurca Cortando o pano, tornando-se parceiro, a partir daquele ano, do cearense Humberto Teixeira com quem compôs gran­des sucessos. Dessa parceria surgiu Baião, gravado pelos Quatro Ases e um Coringa na Odeon, gravado em 1946. Inspirado na vestimenta do cangaceiro nordestino e nos vaqueiros do Araripe, Luiz Gonzaga passou a apresentar-se encourado firmando-se como uma marca registrada em todo Brasil. No final dos anos 40 do século 20, surge o encontro com o então estudante de medi­cina José de Souza Dantas Filho… “Estávamos no ano de 1947, no Grande Hotel do Recife, e assim surgiu a parceria Zé Dantas-Luiz Gonzaga responsável pelos maio­res sucessos do baião nos anos 50”. Ao lado de Zé Dantas e Paulo Roberto, Gonzaga par­ticipou, em 1953, do programa da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, depois se transferiu para São Paulo quando suas apresenta­ções ficaram, cada vez mais, restritas a cidades do interior e ao ciclo junino. No mercado discográfico os seus discos con­tinuaram a ser reprensados e, com o aparecimento dos novos discos 33 RPM, os seus maiores sucessos tornaram a ser reeditados pela RCA. Com o aparecimento da bossa nova, da Jovem Guarda, da música dos Beatles e do Elvis Presley, nos anos 50 do século 20, Luiz Gonzaga eclipsou o seu talento e sumiu no cenário da música brasileira. Coube a Carlos Imperial chamar a atenção para o que muitos julgavam… “superado e obsoleto”: A música dos Beatles têm nítidas semelhanças com a música nordestina. Na se­gunda metade dos anos 60 foi o próprio Carlos Imperial que se encarregou de espalhar o boato de que os rapazes cabe­ludos do conjunto The Beatles iriam gravar Asa Branca. Na linguagem dos jornais, de uma “barriga” o Brasil despertou para a grande figura de Luiz Gonzaga. Daí em diante Luiz Gonzaga vol­tou a crescer, e voltou às paradas de sucesso com Ovo de codorna. Nestes três últimos discos, Luiz Gonzaga chegou atingir a mais de 200 mil cópias vendidas em cada lançamento. No âmbito discográfico suas gravações passaram a contar por vezes, com a participação de seu filho Gonzaguinha, Humberto Tei­xeira, Emilinha Borba, Carmélia Alves, Nélson Valença, José Marcolino, Fagner, Gal Costa, Elba Ramalho, Dominguinhos, Sivuca, Dorinha Gadelha, Alcione, dentre outros. O Rei voltou ao seu trono; novamente o baião vol­tou a reinar.

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A Casa de muitas histórias (junho)

Ao chegarem em Olinda, em 1592, os primeiros beneditinos ocuparam, inicialmente, a Igreja de São João Batista, no Amparo, transferindo-se três anos mais tarde para a Capela de Nossa Senhora do Monte. Devido à distância que separava esse recolhimento da área urbana da primitiva Vila de Olinda, os monges adquiriram, em 1598, as terras do Sítio da Olaria no Varadouro da Galeota, onde, no ano seguinte, iniciaram a construção do atual Mosteiro de São Bento que veio a ser um dos mais belos exemplares da arte religiosa do Brasil colonial. Com a invasão holandesa, foi o mosteiro, a exemplo de outras igrejas situadas no sítio urbano e de todo o casario da vila, completamente destruído pelo incêndio de 25 de novembro de 1632. As ruínas do que restou da primitiva Vila de Olinda aparecem em gravura, desenhada por Frans Post e publicada no livro de Gaspar Barlaeus (1647). Expulsos os holandeses em 1654, a paz voltou à capitania e os monges puderam retornar ao seu mosteiro e assim iniciar as obras de reconstrução. Uma nova igreja vem a surgir, entre 1688-92, segundo registro da Crônica do frei Theodoro da Purificação, na qual aparecem referências à sacristia em pedra e cal, com arcazes em amarelo vinhático e pintura de seis painéis com cenas da vida da Virgem Maria, bem como às obras dos retábulos e cadeiral da capela-mor. Na segunda metade do século 18, o Mosteiro de São Bento foi inteiramente reconstruído e novamente decorado. Nessa reforma, José Luiz Motta Menezes, foi ampliado o corpo de sua igreja, cujo claustro ainda permanecia inacabado em 1764. Foram instaladas novas tribunas (1746-50), construída a torre do campanário (1750-53), com 25,08 m de altura, e levantado o atual frontispício (1760-63). Este último obedeceu ao projeto do mestre-pedreiro Francisco Nunes Soares, também autor das fachadas da Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres dos Montes Guararapes (1785-86) e da capelinha de Nossa Senhora da Conceição da Jaqueira (1761-63). Durante o terceiro período da administração do abade frei Miguel Arcanjo da Anunciação (1783-86), foi executado o atual altar-mor, que ainda em nossos dias desperta a atenção por sua suntuosidade. Por essa época, foram realizados pagamentos no valor de 55$000 ao mestre Gregório (1784-85), responsável pela confecção das imagens de São Gregório e Santa Escolástica, atribuindo-se à mesma oficina a confecção das tribunas e portas da capela-mor, bem como o coro com o seu cadeiral. O altar-mor do Mosteiro de São Bento tem o seu risco atribuído ao beneditino português frei José de Santo Antônio Vilaça, que o projetou seguindo as formas de um barroco tardio, numa transição do rococó para o neoclássico. Nas dimensões de 13,80 metros de altura por 7,80 metros de largura, nele se encontram hoje às imagens de São Bento (176 cm) e Santa Escolástica (176 cm), confeccionadas pelo mestre Gregório e estofadas pelo pintor Francisco Xavier. No ano de 2001, foi o altar, ameaçado pelos cupins, totalmente desmontado a fim de ser restaurado pelos conservadores da Fundação Joaquim Nabuco. Os trabalhos tiveram início em 23 de janeiro e se estenderam até 23 de agosto do mesmo ano, quando foi o conjunto transportado para o Museu Guggenheim de Nova York. Entre 26 de janeiro e 1º de junho de 2002 esteve o altar-mor do Mosteiro de São Bento de Olinda em exposição naquele museu, tendo sido apreciado por um público estimado em 500 mil pessoas. Voltando ao seu local de origem, foi novamente remontado pelos restauradores e solenemente instalado em 25 de outubro de 2002. O altar-mor do Mosteiro de São Bento pesa 12 toneladas, distribuídas numa estrutura formada por 54 blocos, unidos entre si através de garras de aço inoxidável, com argolas para o deslocamento. Por ocasião dos trabalhos de restauração foram usados, no conjunto de sua talha dourada, ouro de 22 quilates com efeitos visuais em laca. Digna de uma visita é a sacristia do Mosteiro de São Bento de Olinda, um dos exemplares mais importantes do patrimônio artístico brasileiro. Nela trabalhou o habilíssimo pintor e dourador José Eloy da Conceição (1785-86), autor de outros trabalhos em São Pedro dos Clérigos e Matriz de Santo Antônio do Recife. Ainda no mosteiro beneditino exerceu suas atividades o habilíssimo pintor Francisco Bezerra (1791-92), autor dos oito painéis (215 x 120 cm), pelos quais recebeu 159$000, com cenas da vida de São Bento, copiadas de estampas originárias de Portugal, dispostas sobre o arcaz e paredes da sacristia. Sendo assim, depreende-se que “a igreja do mosteiro foi construída em diferentes épocas: no óculo da portada aparece a data de 1761, no alto da fachada lateral a de 1779 e na lateral da sacristia a de 1783. Em 1860, o mosteiro passou por completa restauração, destacando-se a vasta capela-mor e todo o seu douramento”. Entre as imagens do acervo, merecem atenção especial o Crucificado do coro, executado entre 1790-91, e a do Menino Jesus de Olinda, moldada em barro cozido por Frei Agostinho da Piedade entre os anos de 1635 e 1639, com 40 centímetros de altura. Vale destaque a imagem de São Bento do altar-mor e o tesouro do mosteiro. Nas dependências da biblioteca do Mosteiro de São Bento, foram instalados, em 15 de maio de 1828, os Cursos Jurídicos de Olinda que ali funcionaram até 1852, quando vieram a ser transferidos para o Palácio dos Governadores e, dois anos depois, para o Recife. Motivaram a transferência dos Cursos Jurídicos de São Bento, “as reiteradas solicitações a respeito por parte dos padres do mosteiro, que se viam privados de uma grande parte do mesmo, os danos causados pelos estudantes, a quebra da paz do claustro e da sua disciplina religiosa pelo desrespeito reinante, e enfim pelos incômodos e desassossego em que vivia a comunidade”. Segundo Pereira da Costa, o salão da biblioteca ficava em um extremo do grande edifício, sobre a sacristia da igreja, medindo 16 m de extensão por 9 m de largura. À exceção das aberturas das janelas e portas, “todo o espaço era revestido de estantes, bastante desfalcadas de livros, faltando, seguramente,

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Nossa Senhora da Penha, a joia das nossas igrejas (maio/2016)

Neste nosso Arruando pelo Recife, vamos através do bairro de São José, em busca da Praça do Mercado, buscando uma visita à Basílica de Nossa Senhora da Penha de França, uma das joias de nossa arquitetura religiosa, recentemente restaurada pelos frades capuchinhos, sob a direção do frei Luís de França Fernandes. Construída entre 1869 e 1882 pelos capuchinhos franceses, instalados naquele local desde o ano de 1656, quando ergueram seu primitivo hospício, o suntuoso templo desperta as atenções de todos que se dirigem ao bairro singular do Recife. Sendo a única igreja da capital pernambucana em estilo coríntio, a basílica foi construída em forma de cruz latina, obedecendo a projeto arquitetônico do frei Francesco de Vicenza, entre 1869 e 1882, guardando uma certa semelhança com a Basílica de Santa Maria Maior, de Roma. As portas principais são entalhadas em madeira, com cenas bíblicas, apresentando seu frontispício dez imagens de santos esculpidas em mármore em tamanho natural. O conjunto possui duas torres finas laterais (40 m de altura) que ladeiam uma torre central (zimbório) sobre o qual se encontra uma imagem de Nossa Senhora da Penha, em bronze dourado e tamanho natural, dominando todo conjunto. Trata-se do maior templo do Recife (65,70 m de comprimento por 28,40 m de largura), distribuído em três naves sustentadas por grossas colunas de mármore italiano, que exibem sob sua cúpula central, nos ângulos destacam-se entre as arcadas, preciosos afrescos, únicos existentes no Brasil, pintados pelo artista Murillo La Greca (1899-1985), representando os evangelistas Marcos, Mateus, Lucas e João. Murillo La Greca, nascido Vicente La Greca, nasceu na cidade pernambucana de Palmares, em 1899, tendo falecido no Recife, em 5 de julho de 1985. Começou suas lições de pintura no Colégio Salesiano do Recife, seguindo depois, aos 18 anos, para o Rio de Janeiro e finalmente Roma. Voltando ao Brasil em 1926, veio consagrar-se como grande artista, ao conquistar vários prêmios no Salão Oficial de Belas Artes (1927) e a dividir atelier com Cândido Portinari. Já casado com a artista Sílvia Decusati (1936), depois de uma temporada na Itália, volta ao Recife para pintar os afrescos da Basílica de Nossa Senhora da Penha, representando os quadros evangelistas (3 metros altura), trabalho que concluiu em 1946 com auxílio de sua mulher. Continuando a nossa visita à Basílica de Nossa Senhora da Penha, extasiados diante do colorido do seu interior; mais parecendo-se com um imenso cenário pintado diante dos nossos olhos do que mesmo uma obra de arquitetura. Destaque especial para o conjunto de colunas em mármore a separar as três naves do templo, as pinturas do teto, detalhes aplicados ao coro e aos dois púlpitos, colunatas e altar-mor, com a escultura da padroeiras rica em detalhes, centralizando às atenções juntamente com a urna do Santíssimo Sacramento e as capelas laterais. Nos altares laterais, destaca-se o de Santo Urbano com sua imagem relicário contendo ossos, dentes e sangue do mártir, trazida de Roma em 1793. Na Basílica da Penha, chama a nossa atenção o túmulo do 17º bispo de Olinda, frei Vital Maria Gonçalves de Oliveira, nascido em També (1844) e falecido em Paris (1878), figura central da Questão Religiosa. Cumprindo determinações do Vaticano, Dom Vital interditou algumas irmandades do Recife que mantinham maçons em seus quadros. A questão com a maçonaria tomou vulto e, por desobediência às ordens do imperador, veio ele a ser preso em 2 de janeiro de 1874. Condenado a quatro anos de trabalhos forçados pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 21 de setembro, é, porém, anistiado em 17 de setembro do ano seguinte. Seu mausoléu, projetado pelo arquiteto Giácomo Palumbo e esculpido por João Bereta de Carrara, foi inaugurado em 4 de julho de 1937. Trata-se de uma visita obrigatória para todos os que visitam a cidade do Recife, visto tratar-se de um dos mais belos templos católicos do território nacional.

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Na capela da Jaqueira (abril/2016)

Se alguns templos pernambucanos se sobressaem pela importância de suas obras de arte, havendo outros que se destacam por sua história, a capelinha de Nossa Senhora da Conceição das Barreiras, na Jaqueira, tem, no seu passado, a marca do romantismo, com a triste história de Maria Theodora e Domingos José Martins. Neste nosso Arruando vamos até ao Sítio das Jaqueiras, na antiga Estrada de Ponte D’Uchoa, onde o capitão Henrique Martins, em 1766, iniciou a construção dessa capela em honra de Nossa Senhora da Conceição das Barreiras, como demonstram os ex-votos hoje existentes no Museu do Estado de Pernambuco. Herique Martins era um português, natural da vila de Oeiras, nas cercanias de Lisboa, onde foi batizado em 10 de agosto de 1704, sendo filho legítimo de Manoel Martins e Páscoa Duarte. Era seu pai um mestre sapateiro que trabalhou como caseiro do negociante Jacques Koster, que o mandou por várias vezes a Pernambuco no comércio de tecidos. Numa dessas viagens, Henrique Martins veio a casar com uma jovem do Recife, Ana Maria Clara, filha do capitão João Machado Gaio e de Ana Gomes de Barros. Passou a ser comerciante abastado no Recife, acionista da Companhia de Comércio de Pernambuco e Paraíba, com posto nas milícias e nas ordens portuguesas, onde era familiar do Santo Ofício e Oficial da Ordem de Cristo. Henrique Martins e sua mulher vieram demonstrar grande devoção à Virgem da Conceição. Sendo ele ligado a vários artistas em atividade em Pernambuco, particularmente pela sua atuação como “administrador das obras” da Igreja do Corpo Santo, no Bairro do Recife. Vários ex-votos do século 18, atualmente integrando o acervo do Museu do Estado de Pernambuco, estão a narrar fases de sua vida na qual ele implora pela intercessão da Virgem Maria em seu favor e até de um escravo que, caindo da Ponte d’Uchoa, fora salvo das águas do rio Capibaribe “em dias de agosto de 1770”. Na construção da Capela de Nossa Senhora da Conceição, no sítio das Jaqueiras, em Ponte d’ Uchoa, vê o professor Ayrton Carvalho o traço do mestre-pedreiro Francisco Nunes Soares, o mesmo que, segundo D. Clemente Maria da Silva Nigra, seria o responsável pelas obras de construção da fachada da Igreja do Mosteiro de São Bento de Olinda (1761-63), tendo também trabalhado na igreja de Nossa Senhora dos Prazeres dos Montes Guararapes (1785-86). Henrique Martins faleceu em agosto de 1782, estando com os seus negócios arruinados, registrando-se um alcance de 8:101$849, retirado da Bula da Santa Cruzada do Bispado de Pernambuco, da qual era ele tesoureiro-mor. Seus bens, dentre os quais o sítio da Conceição da Ponte d’Uchoa (Jaqueiras) e sua capela, foram a hasta pública e arrematados por Domingos Afonso Ferreira. Em 1816, eram senhores daquela propriedade o rico comerciante português Bento José da Costa e sua mulher Ana Maria Teodora, com atuação em várias irmandades do Recife, inclusive “administradores das obras” da Igreja do Corpo Santo (1801).Trata-se de uma das joias do barroco brasileiro. O templo tem o seu interior valorizado pelo trabalho de artistas, entalhadores e douradores, bem como por raros azulejos portugueses policromados, com cenas de caça, pesca e vida de José do Egito. No forro, painéis do século 18 retratam o casamento, a anunciação e a assunção de Nossa Senhora e os demais focalizam a padroeira, emblema da Virgem e motivos florais. O púlpito, em estilo rococó, apresenta, em sua face voltada para o solo, um grande sol em talhada dourada. Painéis a óleo sobre madeira representam São João Batista, São Felipe de Néri, Santo Henrique e “um fingimento de púlpito para representação de Santo Antônio pregando.” Na capela-mor, ornada com um gracioso altar rococó pintado de faiscado, azul, vermelho, branco e ouro, conserva-se a sepultura do coronel Bento José da Costa, “falecido em 10 de fevereiro de 1834 na idade de 75 anos a cuja memória dedicam este monumento sua saudosa esposa e seus 11 filhos”. Fora esse templo objeto de um Breve de indulgência, datado de Roma de 13 de novembro de 1781, no qual o papa Pio VI concede a todos os fiéis “que verdadeiramente arrependidos de suas culpas, confessando-se e comungando, visitarem a Capela de Nossa Senhora da Conceição das Barreiras… desde as primeiras vésperas do dia da festividade da mesma Senhora até o sol posto do mesmo dia e aí rogarem a Deus pela paz e concórdia etc.” Segundo José Antônio Gonsalves de Mello é esse o único documento conhecido, contemporâneo da data da construção dessa capela, com a denominação de Nossa Senhora da Conceição das Barreiras, em alusão ao trecho do rio Capibaribe, margeado por barreiras, onde está localizada. Saqueada em 1950, ocasião em que foram roubadas todas as portas e janelas internas e externas do andar superior, bem como os armários da sacristia, foi a Capela da Jaqueira restaurada pela diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, sob a direção do professor Ayrton Almeida Carvalho, com as suas obras conclusas em 1959. Os jardins que a circundam são de autoria do paisagista Roberto Burle-Marx, cujo projeto foi presenteado ao 1º Distrito da DPHAN e executado pela Prefeitura do Recife, na administração do prefeito José do Rego Maciel. Em 1976 foi novamente a Capela da Jaqueira objeto de furto, quando de lá foi retirada a imagem de sua padroeira, que, segundo alguns, passou a fazer parte de uma coleção particular do Rio de Janeiro. Nessa capelinha, que mais parece saída de um conto de fadas, Maria Theodora, filha do mesmo Bento José da Costa, casou, em 16 de março de 1817, com Domingos José Martins. Na mesma capela, veio Maria Theodora em oração pedir pela sorte do marido, preso na Bahia, por sua participação como chefe da Revolução Republicana de 6 de março de 1817. Condenado à morte, foi arcabuzado em 12 de junho do mesmo ano, juntamente com os mártires padre Miguelinho e o advogado José Luiz de Mendonça. Do cárcere, na véspera de sua execução, Domingos escreveu para a sua amada um soneto, depois impresso no Recife pela Tipografia

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A esquecida rua do Imperador

Dentre as ruas que marcaram o centro do Recife, destaca-se a Rua do Imperador D. Pedro II, a primeira surgida na ilha entre os anos de 1606 e 1613, quando os frades franciscanos nela fizeram erguer o convento e uma igreja dedicada a Santo Antônio. Por ocasião da invasão holandesa, em 1630, foi o Convento de Santo Antônio cercado por muralhas e transformado no Forte Ernestus, uma fortificação retangular com quatro baluartes, dispondo de 19 canhões de diversos calibres. Nesta rua fixou residência o Conde João Maurício de Nassau-Siegen, que aqui chegou como governador do Brasil Holandês em 1637, ocupando uma casa então localizada na atual esquina da Rua Primeiro de Março. Nela o sábio Georg Marcgrave (1610-1648) instalou o primeiro observatório astronômico em terras das Américas e iniciou seus estudos sobre a fauna, flora e tipos humanos da região. Naquele local ele ergueu uma torre de observação em madeira, onde instalou o seu telescópio com o qual fez observações sobre o nosso céu e documentou o primeiro eclipse solar, ocorrido em 13 de novembro de 1640. No extremo norte da ilha, o Conde de Nassau fez erguer o Palácio das Torres (Friburgo) em 1642, rodeado por jardins, árvores frutíferas e dois grandes viveiros para criação de peixes, construindo assim um Jardim Zoobotânico destinado às experiências e estudos dos membros de sua comitiva de cientistas. O trajeto do caminho do palácio, margeado pelo Capibaribe, veio a ser aplainado e transformado em pista de esportes equestres (cavalhadas, corridas, etc.), sendo no seu extremo construído o templo religioso dos calvinistas franceses (1642). No final do século 17 foi criada a Ordem Terceira de São Francisco que iniciou a construção da monumental Capela Dourada dos Irmãos Noviços, construída entre 1695 e 1697, junto ao Convento Franciscano. Os Irmãos Terceiros de São Francisco, irmandade constituída pelos mais ricos comerciantes da então Vila de Santo Antônio do Recife (1709), logo iniciaram a construção do seu templo cujas obras se estenderam de 1702 a 1828. Em 1731 a primitiva Rua de São Francisco recebeu o prédio da Cadeia Pública (hoje ocupado pelo Arquivo Público Estadual) e, por conta dele, a denominação de Rua da Cadeia Nova, pois a primitiva prisão continuaria no bairro do Recife. O primitivo templo dos calvinistas passou a ser ocupado pelo Colégio dos Jesuítas (1686). Com a expulsão dos padres da Companhia de Jesus do Brasil (1757), o conjunto de prédios veio a ser ocupado pelo Palácio dos Governadores da Capitania, seguindo-se do Tribunal da Relação de Pernambuco e pela igreja do Divino Espírito Santo, esta a partir de 1855. No ano de 1859 o Recife recebe com grandes festas a Família Imperial Brasileira, que desfila em grande cortejo na então Rua do Colégio, naquele 22 de novembro. É nesta ocasião que o D. Pedro II, emocionado com a calorosa recepção quando do seu desembarque, haveria exclamado: “Pernambuco é um céu aberto…” A partir da visita da Família Imperial, a antiga Rua da Cadeia mudou seu nome para Rua do Imperador D. Pedro II. Com o centro religioso de devoção, com o Convento de Santo Antônio a receber, todas as terças-feiras, centenas de devotos, durante todo ano… Com suas calçadas largas a permitir a formação a um só tempo de dezenas de conglomerados de homens a falar de política, futebol, vida alheia, negócios e tanta coisa mais… Com os diversos centros administrativos no seu entorno, como o Palácio da Justiça, Fóruns Cível e Criminal, Secretaria da Fazenda, a secção regional da Ordem dos Advogados do Brasil, cartórios, repartições, redações de grandes jornais (Jornal do Commercio, 1919), instituições culturais (Gabinete Português de Leitura, 1850; Arquivo Público Estadual, 1945), bancos, escritórios de advocacia, casas comerciais, bares… Até recentemente, era a Rua do Imperador uma das mais movimentadas da cidade do Recife. A sua história, porém, se confunde com a própria história do Recife… As pedras do seu calçamento testemunharam o caminhar para a forca mártires das revoluções liberais, a exemplo de Agostinho Bezerra Cavalcanti e Frei Joaquim do Amor Divino Caneca (1825)… Foi da sacada de um dos seus sobrados que o então estudante da Faculdade de Direito do Recife (que funcionava no prédio do antigo Colégio dos Jesuítas), Antônio de Castro Alves (1847-1871), conclamava a Mocidade Acadêmica naquele seu Improviso, quando da questão Ambrósio Portugal (1867): Moços! A inépcia nos chamou de estúpidos! Moços! O crime nos cobriu de sangue! Vós os luzeiros do paí­s, erguei-vos! Perante a infâmia ninguém fica exangue Protesto santo se levanta agora, De mim, de vós, da multidão, do povo; Somos da classe da justiça e brio, Não há mais classe ante esse crime novo! Sim! mesmo em face, da nação, da pátria, Nós nos erguemos com soberba fé! A lei sustenta o popular direito, Nós sustentamos o direito em pé!

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O que falta ser tombado

O governador Paulo Câmara empossou, em data de 29 de dezembro último, o novo Conselho Estadual de Preservação do Patrimônio Cultural, além de lançar o Prêmio Ayrton de Almeida Carvalho de Preservação do Patrimônio Cultural de Pernambuco e o Prêmio Ariano Suassuna de Cultura e Dramaturgia. Composto por 14 membros, sendo sete representantes da sociedade civil e sete designados pelo Governo, o colegiado tem entre suas atribuições a missão de deliberar sobre tombamentos de patrimônios, eleição para novos patrimônios vivos, além de outros assuntos relacionados à política de preservação cultural. Diante da existência de um novo conselho, começo por voltar a arruar pelas ruas, becos, ladeiras, praias, pontes e avenidas do Recife e de Olinda, e vejo, em cada passo, elementos originários dos séculos 17 e 18, tão presentes neste início de século 21, apesar da degradação levada pelo abandono e pelo descaso de que foram vítimas. Aqui e ali uma paisagem, um recanto de praça, uma rua deserta ou mesmo um prédio isolado, são marcos de um passado a necessitar do amparo do competente tombamento por parte desse Conselho, com base Lei Estadual nº 7970, de 18 de setembro de 1970, regulamentada pelo Decreto nº 6239, de 11 de janeiro de 1980. No âmbito da preservação da paisagem, eu chamaria a atenção para o panorama da calha do Rio Capibaribe, em sua extensão que vai da BR-101 até a sua foz no Bairro do Recife, que, dia a dia, vem sendo ameaçada por causa da necessidade do disciplinamento de suas margens, merecendo assim um estudo por parte desse conselho visitando sua preservação. No âmbito do patrimônio construído, surge como primeiro conjunto necessitado de urgente preservação o Cemitério do Senhor Bom Jesus da Redenção de Santo Amaro das Salinas, projetado pelo engenheiro José Mamede Alves Ferreira, no governo de Francisco do Rego Barros (futuro Conde da Boa Vista) e inaugurado em 1º de março de 1851. Possui arquitetura radial com os túmulos distribuídos ao longo de ruas que convergem para um ponto central, onde está localizada a capela (1853), o nosso primeiro templo religioso em estilo gótico, disposta no formato de cruz grega, fechada por uma só abóbada, tendo ao centro um grande crucificado de origem francesa fundido em ferro. Seguem-se no rol das propostas o tombamento das sedes dos sítios urbanos do século 18, ainda presentes em nossa paisagem como os Sítios e Capelas de João de Barros, do Senhor Bom Jesus dos Aflitos, do Manguinhos, a qualquer momento passíveis de uma incorporação imobiliária. Outros espaços urbanos, como a Praça Maciel Pinheiro, com seu casario e fonte de mármore, esculpida em Lisboa pelo artista Antônio Moreira Ratto, em 1875, hoje ameaçado pelo abandono e degradação que vem sofrendo, e o Pátio da Fundição Capunga, com todo o casario do seu entorno, localizado na Avenida Joaquim Nabuco no mesmo bairro. A praça central da cidade, a Praça da Independência, popularmente conhecida como Pracinha do Diario, é outro objeto de nossa proposta por nela estar situado o primitivo prédio do Diario de Pernambuco, cuja redação nele funcionou até o ano de 2005. Fundado em 7 de novembro de 1825, por Antonino José de Miranda Falcão, o Diario é em nossos dias o mais antigo jornal da América Latina e o decano da imprensa diária em língua portuguesa. A nossa lista sugere também o tombamento dos jardins públicos criados no Recife de forma pioneira pelo paisagista Roberto Burle Marx, ao tempo que dirigia a Diretoria de Parques e Jardins do Recife (1934-1937), notadamente a Praça de Casa Forte (1934), Praça Euclides da Cunha no Benfica (1935), a Praça Farias Neves Sobrinho e todo Horto de Dois Irmãos, a Praça Dezessete, o Parque Treze de Maio, a Praça do Derby e outros que se seguiram como a Praça Salgado Filho (Aeroporto). Não poderiam ser esquecidos, nesta relação, os conjuntos arquitetônicos que se tornaram marcantes na vida do Recife que hoje sobrevivem pelo simples acaso, não pairando sobre eles qualquer diploma específico de preservação, como é o caso do casario característico da Rua Benfica, de Apipucos, do Poço da Panela, de Ponte D’Uchoa (com antiga estação dos trens da maxambomba), das casas contíguas ao Museu da Abolição, os gradis de ferro das casas existentes ao longo das avenidas Dois Irmãos, Dezessete de Agosto, Parnamirim e Rui Barbosa; os exemplares da arquitetura eclética do século 19 e início do século 20 presentes nas ruas da Imperatriz Tereza Cristina, Nova e Imperador D. Pedro II, no Pátio do Livramento, Pátio do Terço e nas ruas do bairro de São José. Na Rua das Flores, exatamente esquina com a Avenida Dantas Barreto, encontra-se clamando por tombamento o notável mural do artista Francisco Brennand, com 32 m de comprimento, iniciado em 24 de agosto de 1961 e concluído em 24 de abril de 1962, alusivo às duas Batalhas dos Montes Guararapes (1648 e 1649), com versos escritos pelos poetas César Leal e Ariano Suassuna. Um destaque especial para os velhos solares pernambucanos, tão importantes como as antigas vivendas do Barão Rodrigues Mendes (Academia de Letras) e Barão de Beberibe (Museu do Estado), estes tombados nacionalmente, mas outros encontram-se à espera da iniciativa do novo colegiado, como o Solar da Família Baptista da Silva, o Colégio Damas, o Colégio Agnes, o Palácio do Arcebispado, o Solar dos Tavares da Silva e o Solar dos Amorins. Como se não bastasse os exemplos aqui citados, restam ainda os templos construídos no século XVIII, verdadeiras joias da nossa arquitetura religiosa, todos desprovidos de proteção, a exemplo das igrejas de Nossa Senhora do Livramento, Santa Rita de Cássia, Rosário dos Pretos da Boa Vista, Nossa Senhora da Saúde do Poço da Panela, Nossa Senhora da Boa Viagem, da matriz da Várzea, da Moita do Engenho da Torre merecendo a atenção do novo conselho de preservação, visando o seu urgente tombamento. São todos eles testemunhas de um patrimônio construído e hoje ameaçado, para usar a imagem do poeta Ascenso Ferreira, pelas “panzer divisões de prédios-cimento-armado” que “estão tomando de assalto nossa Recife colonial…”

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Nos tempos do inquisidor (parte 2)

Naqueles anos finais do século 16 a próspera Vila de Olinda, sede da capitania de Pernambuco, era habitada por uma sociedade onde havia uma grande ausência de mulheres brancas, pois os portugueses em sua grande maioria deixavam suas mulheres legítimas em Portugal continental, aventurando-se viajar sozinhos em busca da fortuna em terras do Novo Mundo. Aos olhos do visitador da Mesa da Inquisição de Lisboa, Heitor Furtado de Mendoça (sic), chegado a Pernambuco em setembro de 1593, vão sendo desnudados os pecados daquela população, sobretudo os cometidos na intimidade dos lares, na luz soturna das alcovas, que davam lugar ao cometimento usual do pecado da carne, representado pelas relações extraconjugais (responsáveis por uma população de filhos bastardos), pela prática da poligamia, da sodomia (então chamada de pecado do nefando) e do lesbianismo; além da feitiçaria e culto judaico. Com tamanha falta de mulheres brancas, as jovens casavam logo na entrada da puberdade (com 12, 13 e 14 anos), e logo se enchiam de filhos. Das oito filhas da judaizante Branca Dias e do seu marido Diogo Fernandes, por exemplo, somente uma, por não possuir o uso da razão (Beatriz Fernandes), permaneceu solteira. O mesmo acontece com as muitas filhas de Jerônimo de Albuquerque, cunhado do donatário Duarte Coelho, naturais e legítimas, que vieram a fazer grandes casamentos. Da lista de sua descendência aparecem genros da mais alta estirpe: dois fidalgos e quatro portugueses bem-nascidos. A educação dos rapazes ficava a cargo do Colégio dos Jesuítas e dos Beneditinos, enquanto as moças eram educadas por professores particulares como Branca Dias e Bento Teixeira; este último autor da Prosopopea, que veio a ser o primeiro poeta a ter seu nome impresso em letra de forma no Brasil (1601). Ao contrário dos séculos que se seguiram, as mulheres não viviam tão segregadas, algumas delas chegavam a passar “toda à tarde na sua janela e sem trabalhar, à vista dos que passavam”; como Inês Fernandes, denunciada em 22 de novembro de 1593. Havia outras que praticavam, com regularidade, o exercício da leitura, como Maria Álvares e Inês Fernandes, “que costumavam estar aos sábados deitadas numa rede lendo por livros sem fazer nenhum serviço”. Naquele mundo povoado de magias, era comum a existência de feiticeiras, como Ana Jácome, denunciada em 29 de outubro de 1593, por ser dado a feitiçarias “capazes de matar as criancinhas recém-nascidas”. Lianor Martins, a Salteadeira, é denunciada, em 22 de novembro do mesmo ano, por trazer consigo “um buço de lobo e uma carta de Santo Erasmo, juntamente com uma semente que ela com outras suas amigas fora colher numa noite de São João, com um clérigo revestido, as quais coisas dizia fazer querem bem os homens às mulheres”. Da imensa lista, não poderiam faltar as chamadas mulheres do mundo (prostitutas), que praticavam a mais antiga das profissões, como Lianor Fernandes e Maria Almeida, a Flamenga, não faltando as que regularmente eram flagradas em adultério, como Isabel Bezerra e Clara Fernandes, que, na ausência dos maridos, “dormiam com quem lho pediam”. Nada escapava aos ouvidos do inquisidor que, como seu poder supremo, ia devassando os mais recônditos comportamentos mediante uma cadeia interminável de confissões e denunciações dos residentes na localidade intimados a comparecer à Mesa Inquisitorial mediante ameaças dos mais terríveis castigos. Assim surgiam casos de prática de lesbianismo, como as de Clara Fernandes com a sua escrava (4.11.1593), assim como Maria Lucena, mulher de Antônio da Costa (6.11.1593) ou Maria Rodrigues, que é flagrada por um vizinho em colóquio com a adolescente Ana “fazendo uma com a outra como se fora homem com mulher” (10.11.1593). O sapateiro Lessa, “homem alto de corpo e de uns bigodes grandes” que morava numa casa térrea próxima ao Recolhimento da Conceição, era dado à prática da pedofilia, sendo por isso denunciado por um rapaz de 15 anos, de nome João Batista, originário da Ilha da Madeira, que em certa tarde fora à sua oficina buscar um par de chinelas, ocasião em que foi atacado pelo sapateiro que, à força, tirou-lhe o calção e tentou possuí-lo (27 de maio de 1594). Baltazar Lomba foi acusado por Francisco Barbosa de cometer pecado de sodomia com outros índios e com um negro de nome Acahuy. O denunciado é descrito como “um homem solteiro, já velho de alguns 50 anos que costuma coser, fiar e amassar como mulher” (12 de janeiro de 1595). Os casos do cometimento do coito anal (pecado nefando) torna-se frequente entre pessoas do sexo masculino, não faltando, porém, a prática da sodomia entre casais, como a que releva, em 9 de dezembro de 1594, Manuel Franco, 43 anos, com sua mulher Ana de Seixas: “Está casado com a dita mulher e que haverá ora 12 anos e meio, pouco mais ou menos, que, uma noite, estando ele farto de ceia e vinho, cometeu a dita sua mulher por detrás com o seu membro viril, entrou e penetrou dentro no vaso traseiro dela..” Eram comuns os casos de bigamia, alguns deles chegando a notoriedade, como o de Antônio do Valle que, sendo casado em Estremoz (Portugal), voltou a contrair núpcias no Brasil com a filha de Jerônimo Leitão, capitão e governador da capitania de São Vicente (São Paulo). Outro bastante citado nos autos da Inquisição em Pernambuco é a figura do rico mercador João Nunes Correia, “uma das maiores fortunas existentes em Pernambuco nos últimos anos do século 16”; segundo José Antônio Gonsalves de Mello, fora ele por duas dezenas de vezes denunciado à mesa do Santo Ofício. Cristão-novo, nascido em Castro Daire, dizia modestamente “não ter ofício e viver nesta terra por sua fazenda limpamente com quatro cavalos na estrebaria”. Dentre as muitas denúncias que o imputaram uma veio escandalizar os inquisidores, segundo o escrivão do Santo Ofício, correu o mundo “pela boca de todos, altos e baixos, honrados e plebeus, religiosos, nobres e melhores da terra e toda a mais gente e o povo”, Em resumo o capitalista João Nunes vem a ser denunciado por um pedreiro, que estando a retelhar

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No tempo do Inquisidor (Parte 1)

No século 16, a Vila de Marim, como era chamada nos seus primeiros anos a Vila de Olinda, encontrava-se entre os mais importantes aglomerados urbanos da América Portuguesa. Com seu belo casario branco em pedra e cal, situada sobre cinco colinas (montes moderados no dizer de Loreto Couto), com as torres de suas igrejas e mirantes de seus sobrados sobressaindo-se do arvoredo, era um verdadeiro espetáculo aos olhos do mais frio observador. No dizer de Rodolfo Garcia, “um deslumbramento, uma miragem encantadora que jamais se apagará da memória de quem um dia logrou a ventura de presenciá-la – a vista do mar”. Até mesmo um circunspecto naturalista alemão, o professor Konrad Guenther, que por uma temporada foi hóspede do Mosteiro de São Bento, descrevia o mar de Olinda semelhante a uma pedra preciosa multifacetada. “O mar muda de colorido conforme os reflexos da luz: uma orla violeta debrua o horizonte, listas da mesma cor riscam o espelho verde, aqui cintilações rubras, ali azuis – parece que todas as cores do arco-íris se derramam sobre o horizonte”. Teria sido essa primeira imagem que o visitador Heitor Furtado de Mendoça (sic) vislumbrou de Pernambuco, quando de sua chegada em setembro de 1593. Mas o “olhar” devassador da Inquisição não estaria tão somente saciado com as cores do arco-íris, que tomavam de encanto os horizontes de Olinda, mas procurava por recantos mais obscuros da alma humana, o lusco-fusco do comportamento das pessoas, a intimidade das alcovas, o silêncio dos lares, os pecados cometidos nas mais recônditas camarinhas. Assim surgem do interior dos lares daquela pacata sociedade elementos reveladores da origem das imensas proles de filhos, legítimos e naturais, gerados nas alcovas ou mesmo nas senzalas, muitos deles a céu aberto, naquele ambiente luxuriante, povoado por mulheres brancas, negras seminuas e índias nos trajes que vieram ao mundo. Um paraíso onde não existia a noção do fruto proibido, ou, como justificava Caspar van Baerle (1647): ltra aequimocialem no pecari. Melhor traduzindo: Não existe pecado abaixo do Equador. Assim era o comum em todos os lares, e com mais intensidade, nas famílias de maior destaque, o pecado da carne. A poligamia tomava conta da sociedade, somente o cunhado do primeiro donatário, Jerônimo de Albuquerque, falecido em 1593, aparece nos autos das Denunciações como pai de 26 filhos, dos quais apenas 11 eram originários de sua mulher legítima. O exemplo do Adão Pernambucano, como veio a ser tornar conhecido, é seguido por outros povoadores do seu tempo, que assim contribuíram para o crescente número de mamelucos, originários de uniões com as índias da terra, e até mulatos filhos de suas escravas. Nas Denunciações aparecem os filhos naturais de D. Filipe Moura, que fora governador da capitania (1593-1595), Rodrigo Lins e o próprio Jorge de Albuquerque Coelho, terceiro donatário da capitania, aparece como pai de Manuel d’ Oliveira. Em depoimento prestado por Manuel Álvares, um criado da casa da viúva de Duarte Coelho, D. Brites Albuquerque, aparece ele como sendo um “mameluco que dizem ser filho bastardo de Jorge de Albuquerque com uma índia mestiça deste Brasil” (15.11.1593). No dizer de Francis Dutra a indiscriminada atividade sexual dos portugueses com índias nativas e até com escravas da África, já denunciada nas cartas jesuíticas, permitiu concluir que, desde o filho mais novo do primeiro donatário ao mais insignificante degredado, os portugueses foram pais de gerações de mestiços. Preocupou-se também o primeiro inquisidor com a constatação de ritos e práticas judaicas, que viriam denunciar a presença de judeus em nossa sociedade colonial. Dos vários depoimentos surgem os nomes de Branca Dias e de seu marido Diogo Fernandes, proprietários do engenho Camaragibe, ambos falecidos antes da Visitação. Tinham eles em suas terras uma sinagoga familiar, na qual festejavam as principais festas do calendário judaico, como o Iom Kipur e o Roshashaná, ou seja, o Dia do Perdão e o Ano Novo Judaico. Era Branca Dias professora de meninas, a quem ensinava ler, bordar e outros ofícios do lar, sendo elas, já adultas, as suas principais denunciantes.

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