“A volta cinema de rua tem o potencial de ativar o Centro da cidade”

Priscila Urpia e Bárbara Lino, do Coletivo CineRuaPE (foto Eduardo Cunha)

A lembrança de frequentar as sessões nos antigos cinemas de rua – como o Trianon, no Recife, o Iracema, em Vitória de Santo Antão ou o Cine Olinda – traz nas pessoas uma forte emoção nostálgica. Um sentimento compartilhado pelos que assistiram a Retratos Fantasmas, novo filme de Kleber Mendonça Filho, que trata do tema. Essa memória afetiva tem sido a força propulsora para as ações do coletivo CineRuaPE, que atua para salvaguardar e recuperar esses equipamentos.

Mas, nessa empreitada, seus integrantes perceberam que, embora seja importante e louvável a recuperação das salas de exibição pelo poder público, é preciso também recuperar o seu entorno. Algo que é perceptível nas regiões centrais. “O Centro do Recife e de outras cidades do Estado são lugares que cresceram e foram fomentados junto com essas salas. Quando esses lugares prosperaram, os cinemas cresceram. Quando o território entra em decadência, os cinemas entram também”, analisa a cientista social e urbanista Bárbara Lino, que integra o coletivo. Bárbara e Priscila Urpia, outra componente do grupo, conversaram com Cláudia Santos sobre as ações do coletivo. Uma delas aconteceu na pré-estreia do filme de Kléber, quando promoveram uma visita dos espectadores à bela arquitetura art-nouveau do Cineteatro do Parque.

Quais os propósitos do coletivo CineRuaPE?

Bárbara: Ele foi fundado em 2015, é uma organização da sociedade civil composta por um corpo técnico e artístico que trabalha para salvaguardar o patrimônio dos cinemas de rua de Pernambuco, para recuperar não apenas a forma física do equipamento mas, também, entender que tipo de relações com o entorno essas edificações estabelecem. Pensamos como esse cinema pode voltar a fazer sentido com as relações que existem hoje nesses territórios. Além disso, fazemos um trabalho de articulação multissetorial entre as entidades competentes de cada cinema, monitoramos os equipamentos no que se refere à gestão, aos recursos que podem ser destinados a eles e tentamos aproximar as entidades responsáveis que podem fazer as coisas acontecerem nos equipamentos. O coletivo tem uma gama de projetos, como o Cineclube Cine Rua, em que fazemos sessões no cinema e nas fachadas para sensibilizar o poder público e a sociedade para a importância daquele cinema de rua. Outro projeto é o Cine Rua Itinerante, em que promovemos mostras e visitas guiadas.

Priscila: O coletivo trabalha com cerca de 22 cinemas de rua de Pernambuco, distribuídos entre o Recife, Região Metropolitana, Agreste, Zona da Mata Sul e Norte e Sertão. O coletivo trabalha com a proposta de salvaguardar esses espaços, como equipamento, mas também como preservação, memória e programação regular.

O que levou esses os cinemas de rua a fecharem?

Priscila: O advento do videocassete e dos DVDs foi crucial para que fossem sumindo e virassem salas fantasmas. Muitos desses equipamentos se transformaram em igrejas ou mercados. Vemos essa dinâmica também hoje em dia pela quantidade de streamings existentes. E, aí, essas salas foram sumindo. E olhe que Pernambuco foi considerado uma Hollywood do Nordeste quando tinha mais de 100 salas de cinema de rua.

Bárbara: A própria TV surge como esse equipamento novo nos anos 1950. Os cinemas chegam antes disso. Em Pernambuco em 1909/1910 já havia salas que eram privadas, porque todas eram empreendimentos para ganhar dinheiro como qualquer outro negócio. Havia muita demanda. As pessoas, realmente, consumiam muito cinema. As salas que sobreviveram são as que o poder público passou a ser o proprietário.

Gostaria de falar um pouco sobre a história de onde esses cinemas se localizavam. Se a gente for pensar o Centro do Recife e de outras cidades do Estado veremos que são lugares que cresceram e foram fomentados junto com essas salas. Quando esses lugares prosperaram socioeconomica, cultural e simbolicamente, os cinemas cresceram também. Depois chegaram os shoppings centers. No Recife construímos esses equipamentos perto do Centro, que passou a ser abandonado pelas pessoas, em razão do discurso da violência, da decadência do velho contra o novo.

O território, então, entra em decadência e os cinemas entram também. A causa do fechamento dos cinemas, portanto, é multifatorial. O que a gente vê neste momento é uma tentativa institucional de vários movimentos, também multifatorial, de retomar esse território. E imaginamos que se isso acontece, vai impulsionar a retomada do cinema. E se o cinema volta, ele impulsiona a retomada desse território, novamente um influenciando o outro.

Qual a importância de resgatar o cinema de rua, em pleno século 21, diante de uma nova realidade de Pernambuco e do Brasil?

Bárbara: E do mundo também, onde vemos essa retomada das salas de cinema. Esse equipamento ancora uma gama de atividades ao redor dele, não só de cultura, mas também econômica. Antes havia a sala de exibição, mas também tinha o encontro das pessoas, a referência de consumo ao redor do cinema, seja antes ou depois da sessão, seja de apreciação de um barzinho, de um restaurante ou uma livraria. O equipamento promovia o contrário da segregação urbana porque aglomerava pessoas com perfis e interesses diferentes no mesmo território. E isso é o objetivo da democracia. A volta cinema de rua tem o potencial de ativar o centro socialmente, mas também economicamente, porque as pessoas passam a transitar mais por ali e, obviamente, a consumir mais naquele local. A falta de salas influencia a decadência do centro e o contrário também. Hoje, alguns cinemas estão abandonados, mas têm uma capacidade para voltar a funcionar, porque a estrutura física ainda existe. Temos os do poder público que já voltaram, e o Recife é uma cidade muito consumidora de filmes, e também produzimos muito cinema.

Tínhamos uma enorme quantidade de salas que eram associadas à grande produção de filmes, seja para o consumo deles, seja para cineclubes que já existiam na metade do século passado. Percebemos que o Estado continuou produzindo muito cinema e hoje é difícil assistir a essa produção. A ausência das salas de cinema pode vir a fazer com que essa produção tenha uma baixa e a gente sairia desse lugar de Hollywood Brasileira, de alta produção, de reconhecimento Internacional que temos. Essa ausência pode ameaçar o crescimento da indústria do audiovisual aqui.

Priscila: Isso também afeta a democratização da cultura. Sabemos que o acesso ao cinema de shopping é mais caro do que o de rua. É bem importante a gente garantir e falar sobre esse direito à cultura, pensando numa sala acessível para as pessoas e para formação desse público.

Hoje, quando vamos a um cinema de rua, como o São Luiz, por exemplo (que inclusive está fechado para reformas), no entorno, não há bares e restaurantes ao redor, onde o público possa debater o filme depois da sessão, e em certos horários a movimentação de pessoas diminui muito. Como incentivar o pernambucano a frequentar o Centro e os cinemas de rua?

Priscila: Acho bem importante essa pergunta porque o nosso trabalho é promover, salvaguardar a retomada desses cinemas e garantir a eles uma programação regular. Nas décadas de 1940, 50, 60, 70 e até 80 o Recife era uma outra cidade, o público também era outro. É um desafio retomar um cinema de rua pensando no funcionamento desse entorno. Você mencionou o São Luiz, o lugar mais próximo onde há bares fica na Rua Mamede Simões. No cinema da Fundaj, em Casa Forte, só tem um café, no Derby também não tem esses espaços de convivência pós-exibição.

O que a gente fala muito sobre essa retomada e a “repreparação” da formação do público é que a sociedade civil tem que querer também o cinema de rua de volta. O Cineteatro do Parque, por exemplo, retomou o ano passado. Depois de 10 anos fechado, o entorno ainda está entendendo que ali tem um cineteatro. E esse cinema ainda não tem uma programação regular, isso também dificulta a formação de público.

Bárbara: Quando os cinemas existiam no seu auge, a cidade tinha um funcionamento que não ia até seis horas da tarde. O cinema ficava aberto até mais tarde, ele fazia parte da vida pública não apenas para quem não trabalha. Hoje, os equipamentos culturais, como os museus, também têm dificuldade de ficar aberto fora do horário comercial. Como é que se vai ter consumo de cultura se as pessoas estão trabalhando ou estudando nessa hora? Isso é uma coisa muito importante de ser falada porque tem origem quando o Centro virou estritamente comercial.

Antes, as pessoas moravam mais próximo do Centro em bairros, como Santo Antônio e São José, onde havia também muitos cinemas. No projeto de expansão e revitalização urbana, que tinha a ideologia de modernizar, de fazer grandes avenidas, que abriu a Guararapes, a Boa Vista, a Dantas Barreto, alguns prédios novos, mais altos, vieram desse movimento. Esse recorte vem exatamente por cima de onde as pessoas moravam. As unidades de habitação que existiam foram removidas desse território.

Se analisarmos a cidade modernista, ela é setorizada. Brasília tem o setor do comércio, o da habitação, o da escola, o do trabalho… É um modelo que foi aplicado numa cidade existente que não tinha planejamento para fazer isso. O planejamento ficou estético, foi associado às práticas existentes, ele não estava na linha de sucessão das práticas de sociabilidade que existiam. Tanto é que hoje, a partir das 6 horas da tarde, está tudo fechado no Centro e, nesse horário, as pessoas correm pra casa, estão com medo porque também há uma ideologia do medo destinado ao local em função de identificá-lo como um lugar para você não estar, porque é perigoso, sujo e feio.

Mesmo em Casa Forte, que é esse lugar do ideal da moradia, não há esses espaços de convivência ao redor do museu. Considerando o Parque e o São Luiz, não adianta voltar apenas o edifício. Junto com ele tem que vir elementos ao redor. Precisamos pensar a cidade. Este é um momento de oportunidade, porque o poder público, as instituições e o mercado estão de olho nesse território novamente, já que não tem mais para onde expandir a cidade que, agora, vai expandir para dentro.

Como está a retomada? Existe alguma reivindicação do coletivo para as autoridades?

Bárbara: Neste momento estamos em articulação para a abertura do Cine Olinda, que inclui quem pode executar esse recurso, qual a entidade responsável que tenha competência formal de fazer isso e como propomos a gestão desse equipamento. Entramos em contato com instituições a nível municipal, estadual e federal. Escrevemos um ofício para elas e as colocamos em contato umas com as outras. Também fazemos esse trabalho de articular as entidades, porque às vezes é isso que falta.

Priscila: No início do coletivo, em 2015, tudo começou com uma Carta Manifesto ao Governo de Pernambuco solicitando atenção a esses cinemas ainda existentes no Estado. A partir dessa carta foi criado um grupo de trabalho, o GT Cine Rua dentro da Coordenadoria do Audiovisual da Secretaria de Cultura. Esse grupo, por muitos anos, conseguiu trabalhar e criar um programa chamado Programa Cine de Rua, pautado pelos interesses do coletivo e pela sociedade civil.

Desde o início conversamos com a gestão pública, porque acreditamos ser o melhor caminho para a retomada desses cinemas. O Programa Cine de Rua está suspenso atualmente. Desde a troca de gestão, não teve continuidade. Estamos tentando a sua retomada, por ser importante. Ele mapeava todos os cinemas de rua e nele trabalhavam dois GTs, o Cine Rua, que tratava de pautas mais urgentes, e outro para pensar a programação dos equipamentos que estavam sendo retomados, tanto o cinema de Palmares, quanto o São Luiz.

Como está a retomada do Cine Olinda?

Bárbara: No ano passado, um acordo foi firmado entre o Governo do Estado e a prefeitura. Ele é um equipamento da Fundarpe (Fundação de Cultura do Estado), portanto, é público, por isso, tem mais chance de “voltar à vida”. Ele dispõe de recurso, que só pode ser usado para finalizar a reforma, iniciada há quase 10 anos. É muito tempo! O Cine Olinda está quase pronto, teve reforma acústica, de acessibilidade e teve reforma estrutural também. O recurso empenhado pelo Estado é para ser gerido pela prefeitura. O Iphan será o gestor da execução e nos disse estar preocupado com a pós-reforma porque existe esse fantasma de reformar um edifício, que pode ficar sem funcionar e voltar às ruínas porque não vai ter como ser mantido.

No ano passado houve uma manifestação de interesse da presidência da Fundaj para gerir esse cinema, como eles fizeram com o cinema do Porto Digital. Se o Cine Olinda consegue triangular direitinho quem vai dar o recurso, quem vai gerir, quem vai fazer essa gestão da programação e manter o sistema vivo, ele pode fazer o ciclo completo e voltar à programação regular, como por exemplo, o Parque está precisando fazer. Lá voltou o equipamento, mas não voltou a programação regular. Nosso encaminhamento foi no sentido de todas as pessoas que têm essas competências diferentes entre si, mas que são complementares, possam conversar e chegar numa direção comum para que o equipamento volte e voltem também as atividades ao redor dele.

Vocês poderiam destacar alguns de cinema de rua que ainda existem no Estado?

Priscila: No Sertão, em Triunfo, temos o Cine Teatro Guarany, que está funcionando, mas não tem programação regular. Em Arcoverde há um cinema que a gente acompanha, também, o Rio Branco e existe na Zona da Mata o Iracema, em Vitória de Santo Antão. Um cinema que está em pleno funcionamento é o Cine São José, em Afogados da Ingazeira, que recebe programação de qualquer lugar do mundo. É um cinema de rua lindíssimo que abriga tanto a programação regular no final de semana quanto mostras e festivais que acontecem na região do Pajeú.

Bárbara: O São José é muito interessante, porque há elementos ao redor dele que estão em funcionamento. O cinema existe plenamente, frequentado por pessoas de diversas idades. No Agreste, em Taquaritinga do Norte, há o Cine Santo Amaro que fica numa praça. Ele tem recebido algumas mostras e festivais, mas não tem programação regular e consegue ficar parado muito tempo e ter outros usos enquanto isso. Já foi comitê político, por exemplo. Em Vitória de Santo Antão, o Iracema fica num edifício no centro, já foi até cotado para ser igreja. Ele é privado e está fechado, inclusive estava à venda na última vez que visitamos.

Havia muitos cinemas nos bairros também, não é?

Bárbara: Sim. As salas estavam distribuídas onde havia gente. Existia a praça, a igreja, o mercado e o cinema. São equipamentos âncoras para as pessoas terem uma vida cidadã no bairro onde residiam.

Priscila: Moro numa rua onde ficava o Cine Albatroz, era um cinema conhecidíssimo de Casa Amarela. Tanto que ainda o ponto de referência do local é a “rua do antigo cinema Albatroz”. Casa Amarela tinha uns três cinemas. Bárbara: Muitos viraram igreja também pela questão arquitetônica de ser um auditório, que é o mesmo estilo dos altares católicos e evangélicos. Mas temos casos de cinema que passaram por todo o ciclo e voltaram a ser cinemas, como em Jaboatão. O Samuel Campelo é um cinema privado, que foi desapropriado, funcionou como igreja por um tempo, mas aí o movimento artístico do lugar também entrou em acordo com a prefeitura e voltou a ser cinema. Agora é gerido pelo Sesc.

Como foi a ação da pré-estreia do filme Retratos Fantasmas, de Kléber Mendonça filho, no Cineteatro do Parque?

Priscila: Foi uma sessão memorável, por ser um filme que fala sobre cinema de rua, exibido dentro de um cinema de rua. Achamos bem importante que o filme seja reverberado para o mundo, pela importância que a temática traz e que reforça nosso trabalho. O filme é benéfico para a conscientização desses espaços públicos ainda existentes não só em Pernambuco, mas no mundo, e para pensar como a sociedade pode cobrar do poder público para que esses cinemas sejam retomados.

Achei bem importante para compararmos como eram antigamente esses cinemas, inseridos no Centro, e como eles estão atualmente, o que eles viraram. O Trianon e o Art Palácio, por exemplo, não existem mais, mas ficaram guardados na memória. A questão afetiva da memória e a falta desses equipamentos na cidade são o que mobiliza as pessoas a quererem de volta esses cinemas ou preservar os que temos.

Bárbara: Uma apreciação que tive, quando o filme terminou, é que eu tinha acabado de assistir a minha vida, a vida da minha família, a vida dos meus amigos. Essa questão da memória é muito importante. Ela faz parte do cotidiano, que é do presente e do futuro também, porque se a gente vai continuar existindo enquanto sociedade, que tipo de sociedade vai ser essa? Que tipo de memória vai construir esse futuro? Ele vai ser construído junto com o que já existe. Não se pode passar uma régua em cima do que existe e criar do zero. O patrimônio tem a ver com o que permanece. Essa memória é tão forte e viva, que ao falar dela nos emocionamos. No coletivo promovemos também um roteiro a pé por alguns cinemas e as pessoas, ao fazerem o caminho, lembram de coisas que falando simplesmente elas não lembrariam. São memórias que também estão no corpo, nas relações que criamos.

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