Poder da escuta: Um novo olhar sobre a habitação popular no Recife
Em seminário sobre habitabilidade, lideranças comunitárias, pesquisadores e urbanistas apontam que enfrentar enchentes e desigualdade exige ouvir as periferias, valorizar as singularidades e garantir a continuidade de políticas públicas. *Por Rafael Dantas “Ninguém vai morar em área de risco porque acha bonito. A culpa é de uma estrutura racista que fez com que as pessoas pretas e mais vulnerabilizadas fossem para esses locais”, sentenciou a líder comunitária da Vila Arraes e presidente da Associação Gris Espaço Solidário, Joice Paixão, durante a sua apresentação no II Seminário Recife Cidade Parque – Os Desafios da Habitabilidade no Recife. O evento foi realizado pelo projeto de pesquisa Recife Cidade Parque (fruto de convênio entre a Prefeitura do Recife e a Universidade Federal de Pernambuco) e as secretárias municipais de Habitação e de Desenvolvimento Urbano. A comunidade de Joice é banhada pelo Rio Capibaribe e foi uma das regiões do Recife que mais sofreu com as enchentes de 2022. Algumas casas foram cobertas até o telhado em pouco tempo. Um evento climático extremo, que ela descreve com outras palavras. “A gente passou um inferno. A enchente que levou uma casa inteira, um sofá, uma geladeira, destruiu vidas e levou muitas memórias. As perdas não foram só materiais”. Para a ativista, a discussão sobre moradia precisa estar articulada à adaptação climática territorial, considerando as particularidades geográficas do Recife e a vulnerabilidade social de seus moradores. Acima de tudo, ouvir a população negra e periférica. Ela considera que sem uma mudança estrutural – com governança inclusiva entre poder público, academia, sociedade civil e setor privado – as comunidades continuarão a pagar com vidas as falhas do estado. O cenário tratado por Joice e por quem mora nas periferias da cidade expõe uma necessidade histórica, que só foi agravada com as mudanças climáticas. O problema não é só de habitação, é amplo e envolve vários aspectos da moradia. Um conceito que se tornou conhecido como habitabilidade. “Em sua pesquisa sobre habitabilidade urbana para gestão de ocupações irregulares, defendida em 2007, Cláudia Castro resgata o que Simone Cohen, em seu estudo, concluído em 2004, define como cerne da questão da habitabilidade urbana: a inserção da unidade habitacional no espaço urbano, seja pela infraestrutura, serviços e equipamentos, seja pela inclusão como questão social”, ressalta Lúcia Veras, professora da UFPE e pesquisadora do projeto Recife Cidade Parque. A discussão alerta para a urgência do avanço das políticas urbanas, diante da pressão das mudanças climáticas, e para a insuficiência da maioria das ações, que se restringem à produção de novas unidades habitacionais. Sem planejar o transporte, a conexão com as oportunidades de trabalho, o acesso ao lazer e aos serviços básicos, os dramas vividos pelas populações mais vulneráveis por morar nos lugares mais distantes e com menor infraestrutura não serão resolvidos. No momento em que a capital pernambucana faz um esforço de planejamento de longo prazo, mas com execuções no curto e médio prazo, via o projeto Recife Cidade Parque, o olhar das populações marginalizadas é fundamental. O que o seminário deixou evidente é que quando pesquisadores e agentes públicos envolvidos na causa realizam estudos e planos feitos no escritório, sem a intensa participação popular, eles não contribuem para integrar as duas “cidades” – a formal e a informal – que habitam no mesmo território, mas têm demandas muito distintas. EXPERIÊNCIA DE SÃO PAULO PARA INSPIRAR O RECIFE “É importante que o projeto de [habitação] valorize as singularidades de cada lugar, [e que seja concebido] dentro de uma visão sistêmica, do ponto de vista da integração desses espaços com o sistema de áreas públicas e da integração desse bairro com os bairros vizinhos e a cidade.” – Marcos Boldarini Durante o seminário, o arquiteto e urbanista Marcos Boldarini contou duas experiências exitosas da cidade de São Paulo na regeneração de um território. Tanto o projeto de urbanização do Cantinho do Céu (na Zona Sul de São Paulo), como a intervenção em assentamentos de São Bernardo do Campo, tiveram foco na qualificação de moradias mas, também, uma transformação mais ampla do espaço. No Cantinho do Céu, em São Paulo, um projeto de urbanização transformou uma área de 1,5 milhão de metros quadrados às margens da Represa Billings, beneficiando cerca de 10 mil famílias. A intervenção integrou infraestrutura básica, requalificação de ruas, vielas e escadarias, implantação de transporte aquático e criação de parque linear, áreas de lazer e equipamentos públicos. As soluções foram adaptadas ao relevo e às necessidades da população, com participação comunitária. Nos assentamentos de São Bernardo do Campo, uma intervenção em cerca de 500 mil m² beneficiou aproximadamente 3.300 famílias localizadas em áreas próximas à Represa Billings e à Serra do Mar. O projeto buscou integrar os assentamentos ao restante da cidade, superando barreiras como rodovias e relevo acidentado, enquanto respeitava remanescentes de Mata Atlântica e áreas ambientalmente sensíveis. Foram planejadas melhorias em moradias, espaços públicos e infraestrutura, articuladas com o plano diretor municipal, com foco na inclusão social, conexão com empregos e serviços. “Valorizar as singularidades de cada lugar do ponto de vista do projeto como uma reflexão única para esses locais, evita a ideia da mera reprodução do projeto”, afirmou Boldarini. Ao mesmo tempo, a intervenção deve integrar os desejos dessa população atendida diretamente pelas transformações com os demais contextos da cidade. “É importante que o repertório do projeto considere essas condições dentro de uma visão sistêmica, do ponto de vista da integração desses espaços com o sistema de áreas públicas e também da integração desse bairro com os bairros vizinhos e a cidade”, orienta o arquiteto. Experiências que dialogam com as expectativas do Recife Cidade Parque, que busca promover uma ampla transformação na capital pernambucana, com um olhar a partir das suas três principais bacias hidrográficas (dos rios Capibaribe, Beberibe e Tejipió) e da frente marinha. Além do parque linear ao longo dos rios, o projeto visa também valorizar os corredores que conectam os cursos d’água da cidade com os espaços verdes. DIRETRIZ E AS PRIORIDADES “Ao pensar nos desafios da habitabilidade do Recife hoje e
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