“Vamos priorizar negócios com pessoas pretas, periféricas e do interior” – Revista Algomais – a revista de Pernambuco

“Vamos priorizar negócios com pessoas pretas, periféricas e do interior”

A Startupbootcamp, terceira maior aceleradora de startups do mundo, embarcou no Porto Digital, no Recife, com uma meta ousada: investir em 20 mil startups nos próximos 10 anos no Brasil, sendo que todas devem estar conectadas com os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e, prioritariamente, lideradas por pessoas pretas, periféricas e do interior do Brasil. Nesta entrevista a Cláudia Santos, o head da empresa no Brasil, Edgar Andrade, explica que tal propósito não mira apenas a melhoria do planeta mas, também, tem uma boa carga de business. Baseado em análises de renomados especialistas de mercado, Edgar, que também é fundador do Fab Lab REC, assegura que os negócios que tendem a ter sucesso serão aqueles que vão resolver os grandes problemas complexos relacionados aos ODS. Também afirma que aqueles que vivenciam esses problemas, como as pessoas pretas da periferia, são mais capazes de encontrar as soluções. Confira a entrevista a seguir.

A Startupbootcamp é a terceira maior aceleradora mundial. Fale um pouco sobre ela.

Vou subverter a pergunta, vou começar falando da visão que eu tinha dos processos de aceleração de empresas. Tenho uma trajetória empreendedora, tirei a carteira de trabalho aos 14 anos e ela nunca foi preenchida. Tive experiências em diversas áreas e a maioria deu errado, mas aprendi com cada uma delas. Costumo dizer que o medo de errar é o que mais atrapalha a vida das pessoas.

Com essa pegada, interajo com o Porto Digital, participei de uns quatro planejamentos estratégicos do parque, mentorava startups, mas teve uma hora que perdi a paciência e parei de participar dessas experiências porque me incomodava muito essa história de ser unicórnio (startup que se transforma numa empresa que vale US$ 1 bilhão). Não tenho nada contra unicórnios, até porque seria uma contradição nesse papel que assumo agora, mas sou contra a ideia de que todo mundo tem que chegar lá.

Bem, a Startupbootcamp foi formada por dois empreendedores (Joop Ende e John Mol) que fundaram a Endemol, produtora que criou o Big Brother e o The Voice. Eles venderam a empresa, pegaram o dinheiro e criaram a Startupbootcamp. E aí tem um parêntese que acho muito interessante que é a história de Kauan.

Quem é ele?

Kauan Von Novack, gestor global da Startupbootcamp. Ele é de Curitiba e foi trabalhar no Vale do Silício há 15 anos, numa das maiores aceleradoras de startups do mundo. Mas começou a questionar esse modelo em que se bota dinheiro em 10 startups e fica-se rezando para ver se uma delas vira um negócio gigante que pague a conta toda. Ele pegava altas brigas com a galera lá até que os donos da aceleradora disseram: “oh Kauan, você não vai dar certo com a gente não porque bate muito de encontro com nossa filosofia. Mas têm uns doidos lá em Amsterdam que falam essas mesmas coisas que você, acho que você vai dar certo com eles”.

Duas a três semanas depois, Kauan se mudou para Amsterdam para trabalhar com a Startupbootcamp. A aceleradora é recente, nasceu em 2010, mas quem botou grana no primeiro fundo, criado lá atrás, já tirou 15 vezes o investimento que foi feito. Foi a primeira aceleradora a abrir capital na bolsa de valores de Amsterdam. Quando você tem um fundo listado na bolsa, você pode desistir a qualquer momento e pegar seu dinheiro de volta, o que já oferece mais segurança para quem vai investir. No modelo tradicional de aceleração de startup isso não acontece. E outra: você investe num pacote de 20 a 30 empresas e o super-resultado de uma, compensa a perda de outra.

É um modelo que já existe no exterior?

Existe muito no exterior e os fundos de pensão se envolvem nesses processos. Agora, é um desafio também lá fora convencer as pessoas de, ao invés de investir em fundo de renda fixa, botar dinheiro nas startups. Tem uma fala que Kauan vem repetindo: “se todos os brasileiros que investem em renda fixa pegassem apenas 10% do seu dinheiro investido e direcionasse para startups, em 20 anos a gente teria uma empresa do tamanho da Microsoft no Brasil. Muitas darão errado, mas fatalmente surgirão negócios de alta escala.

Quando a gente fala em investir em 20 mil negócios no Brasil nos próximos 10 anos é na perspectiva de que surjam grandes negócios a partir desses investimentos e que gerem impostos em várias cidades, no Recife, em Vitória da Conquista (BA), em Campina Grande (PB), em Mogi das Cruzes (SP), em Saquarema (RJ). Por isso a gente traz a importância de se montar uma estrutura de formação empreendedora, para ter mais gente no jogo, e de incentivo à interiorização desses negócios.

Hoje, cada vez que você anuncia no Facebook ou nas outras redes, isso gera imposto lá no Vale do Silício, na Califórnia, ou seja, a gente ajuda a financiar as políticas públicas dos EUA, onde a empresa está sediada. Se daqui a 10/20 anos surge uma grande empresa de comunicação no Porto Digital, que serve ao Brasil e ao mundo todo, esse imposto todo virá pra cá. Imagine o impacto de longo prazo da geração de impostos que um movimento desses pode provocar, em especial no interior do País. Uma das nossas prioridades é investir em negócios no interior e hoje é possível fazer isso porque a maioria das cidades está conectada com o mundo.

Como você passou a integrar a equipe da Startupbootcamp?

Fiz uma palestra na 32ª Conferência da Anprotec (Associação Nacional de Entidades Promotoras de Empreendimentos Inovadores) em Salvador, falando de experiências de inovação na periferia e no interior. Na sequência, veio Kauan falando sobre a Startupbootcamp. Pensei que fosse uma aceleradora como a maioria. Só que teve um momento em que ele disse que traria três paradigmas fundamentais que quebram a lógica das aceleradoras. O primeiro vem da decisão de só investir em negócios conectados com os ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável).

Ao falar da segunda quebra de paradigmas, ele disse que fez a seguinte pergunta para uma grande empresa de consultoria global: “se não existissem governos, nem grandes corporações, quantas startups precisaríamos investir para resolver os problemas relativos aos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável?” A resposta foi 100 mil startups. Disso, veio a decisão de investir em 100 mil negócios no mundo nos próximos 10 anos para resolver os problemas do planeta. Nessa hora eu me aprumei na cadeira e pensei: “que bicho valente da gota!”.

Não se trata de uma empresa boazinha que quer melhorar o mundo. Queremos melhorar o planeta, mas veja: Larry Fink (CEO da BlackRock, uma empresa de gestão de investimentos com US$ 8,7 trilhões em ativos que está sob seu gerenciamento) anunciou que os próximos mil unicórnios do planeta serão negócios conectados com sustentabilidade. Ou seja, quando decidimos só investir nisso, o objetivo é melhorar o planeta e também gerar retorno aos nossos investidores. Essa tendência tem um motivo: os problemas simples da humanidade, de conectividade, de serviço, de compras online já foram resolvidos. Não tem mais espaço para aplicativo de transporte ou de namoro. O que sobrou foram os problemas complexos que demandam muita formação, muito conhecimento para resolver.

Quando ele comentou: “estou no Brasil procurando a cidade que será a sede da Startupbootcamp”, fui deselegante, interrompi a palestra dando um grito: Hei! Estava procurando, porque a sede vai ser no Recife, no Porto Digital. Ele levou um susto, ficou constrangido, eu não, pois sou cara de pau. Veio até mim, apertou minha mão: “certo, vamos conversar”.

Ele seguiu com a palestra trazendo o desafio: “e se dessas 100 mil startups que vamos investir nos próximos 10 anos, por que não 20 mil serem do Brasil”? Aí, veio a terceira quebra de paradigma quando ele disse que vai priorizar negócios de pessoas pretas e periféricas e eu incluí o interior na conversa. Liguei para o prefeito João Campos, para pessoas do Porto Digital, chamei também Duda Oliveira, estudante de robótica da rede pública, e articulei uma agenda com Kauan. Ele veio para o Recife e em dezembro ficou acertada a vinda Startupbootcamp para cá.

E aí você passou a trabalhar na aceleradora?

Sim, mas ele me convidou para ser o head da Startupbootcamp no Brasil, o que foi uma surpresa para mim. Aceitei com a condição de continuar com meus negócios no Fab Lab REC e com as minhas palestras. Nós vamos priorizar negócios com pessoas pretas, periféricas e do interior, mas disse que teríamos que fazer um movimento ostensivo para formar pessoas na periferia para acessarem esses recursos. Se não fizermos isso, não vai ter gente preta acessando e aí a gente vai ter, depois, que justificar o percentual altíssimo de aceleração de negócios de pessoas brancas. Ele topou na hora. Surgiu daí a criação de um Pacto Nacional pela Educação Empreendedora.

O que é este pacto?

Ele será pautado por uma plataforma. Já validei o modelo com Silvio Meira (que é um dos mentores e apoiadores do pacto) com conteúdo e ferramentas para ajudar pessoas, escolas, cidades, organizações sociais, instituições a falar sobre empreendedorismo, inovação, criatividade, negócios e a conectar experiências que já existem com essa agenda de investimentos não só da Startupbootcamp, mas também de investidores anjos e de outras aceleradoras.

Não nos preocupamos apenas em ter as 20 mil startups investidas nos próximos 10 anos, mas queremos apoiar o desenvolvimento do País. Não basta trazermos bilhões de euros de fora pra cá pra investir nos negócios. Isso é pouco. Queremos também ajudar a formar as pessoas que vão acessar esses recursos e descentralizar geograficamente a aplicação deles. O Sistema S é um parceiro fundamental porque têm 6,5 milhões de estudantes no Sesc, Senac, nos projetos de educação empreendedora que o Sebrae roda.

Como a gente faz pra mostrar às pessoas que não tem nenhum bicho de 7 cabeças nisso, que resolver problema na periferia é o que mais a galera faz? A gambiarra é prova disso, ela é uma MVP (Produto Mínimo Viável), uma solução rápida que a galera consegue usando os insumos que têm disponíveis para resolver um problema.

A partir desse pacto, a gente redesenha o movimento clássico do investimento, no qual a aceleradora escolhe as 10 empresas, bota R$ 100 mil na mão de cada uma, aí elas começam a se estruturar, a faturar mais, evoluir até chegar no vale da morte: 70% das startups morrem entre dois e cinco anos de existência. A Startupbootcamp é a aceleradora que tem a maior taxa de sobrevivência das empresas do mundo, 70% a 75% das startups investidas por ela sobrevivem e viram bons negócios.

Quais os motivos desse desempenho?

Primeiro, a Startupbootcamp investe pesado em inteligência de negócios, em pesquisa e tendência de mercado. Quando escolhe um negócio para ser investido, ele está tão conectado com essas tendências que as chances de sucesso já aumentam na largada. Quando a gente decide investir apenas em startups conectadas com as ODS, não é chute, é que a gente sabe que essa tendência vai se materializar e que grandes negócios surgirão daí. Além disso, existem mais de 1 milhão de startups na nossa base de dados. Imagine a quantidade de dados que temos para estudar! Isso nos ajuda a distinguir caminhos que vão dar errado e aqueles com maiores chances de sucesso.

Em segundo lugar, o apoio que damos na gestão, no amadurecimento desses negócios é determinante. Outro elemento é como a Startupbootcamp está presente em 16 países, os negócios já surgem com potencial de internacionalização. Se uma startup do Nordeste achar uma solução para determinado problema que também existe na Ásia e na África, ela terá chances de entrar no mercado africano e no asiático. A possibilidade de comunicação com o mercado global também ajuda a aumentar a taxa de sobrevivência dos negócios.

Temos um desenho de investimento em que precisamos de um grande esforço nacional que começa na escola e termina no unicórnio. Precisamos ter talvez 100 mil, 200 mil, 300 mil startups disputando esse recurso. Quando a gente cria uma estratégia que conecta a escola por meio de conteúdo e com formação, há a possibilidade de ajudar mais pessoas a conseguirem empregos melhores e trazer novos empreendedores e empreendedoras que vão criar seus negócios que não necessariamente são inovadores.

Como assim?

Por exemplo, a gente pode investir em pessoas que vendam bolo de bacia. Mas, em algum momento, parte dessas pessoas vai perceber que se criar um produto que resolva um problema relevante na comunidade, vai ganhar mais dinheiro do que ganharia fazendo aquilo que tem um bocado de concorrente. Parte dessas pessoas vai virar a chave para esse novo modelo, que envolve inovação, resolução de problemas complexos.

A gente cria um arcabouço de comunicação, de formação, de construção de comunidade criativa, de inovação que vai impactar estudantes nas escolas, pessoas que estão querendo emprego melhor, que querem empreender, mas não necessariamente com negócios inovadores. Teremos patrocínio para viabilizar isso porque os investidores que botam dinheiro no fundo querem retorno de investimento, mas no processo de formação a gente não pode ter o apego ao retorno de investimento, porque são processos de aprendizado para o empreendedorismo e para a inovação. Com esse funil mais longo e amplo, a gente vai ter fatalmente mais gente com bons negócios disputando os recursos que a galera bota nesse fundo com a expectativa de ter retorno financeiro.

É lógico que a gente quer que surjam unicórnios no topo do funil, mas nem todo mundo precisa ser unicórnio ou ter um negócio inovador que vai ser investido pela Startupbootcamp. E por que trazer o interior e a periferia para o jogo? Não é só porque a gente quer ajudar a galera, é porque os problemas complexos do mundo estão nesses lugares e eu não entendo nada da periferia. Temos que pegar quem vive o problema no dia a dia e conectá-las com pessoas que vão ajudar no processo de formação e auxiliar essa galera a resolver o problema. Elas é que são protagonistas da resolução dos próprios problemas.

Quais são os próximos passos?

Temos duas frentes. A primeira envolve o pacto pela educação empreendedora e, para isso, precisamos de muitas parcerias. Já contamos na largada com Anprotec, Senac, Porto Digital, Prefeitura do Recife, Instituto Tríbio, Porto Marinho, Manguez.AL, Instituto FAB LAB Brasil, TDS Company e com Sebrae. Queremos nos próximos dias transformar esse pacto num projeto palpável para captar patrocínio para colocarmos as primeiras ações em prática ainda este ano. Já garantimos R$ 10 milhões para investimentos em 2023/2024, que podem virar R$ 12 milhões, porque a nossa expectativa é articular parcerias que entrem com a contrapartida de 20%.

Esses recursos podem ir para qualquer lugar do Brasil, eu quero, de preferência, que seja no Nordeste a primeira experiência, mas vai depender do parceiro que chegar junto primeiro. A ideia é: para cada um real que o parceiro disponibilizar, a gente coloque cinco e hoje já temos R$ 10 milhões garantidos. Vamos captar mais. Queremos lançar a nossa primeira chamada de startup no segundo semestre com a expectativa de fazer os primeiros investimentos ainda este ano ou no máximo no início do ano que vem.

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