Situada numa grande reserva de estuário entre os bairros da Imbiribeira e do Pina, a Ilha de Deus é exemplo de resistência. Resistência atrelada à força de mulheres que de tanto pelejar por melhores condições de vida, vêm acumulando conquistas como a construção de um conjunto habitacional e de uma ponte, cujo nome não poderia ser outro: Ponte Vitória das Mulheres. Com produção da Tarrafa Produções, o curta de estreia de Anna Andrade, Entremarés, acompanha a rotina de três irmãs que adotaram a ilha como lar e fazem do mangue fonte valiosa de sustento. Através das lentes de Adalberto Oliveira, diretor de fotografia, o tempo parece correr devagar, conforme o ritmo do vento que balança as folhas dos coqueiros e faz dançar a vegetação dos manguezais. Do brilho negro das conchas que sobram da extração do sururu ao pouso de pássaros sobre a lama do mangue, imagens que mais parecem obras de um artista plástico. Em entrevista à Revista Algomais, a diretora Anna Andrade conta detalhes do projeto e revela como sua relação com a Ilha de Deus e com os moradores do local serviu de inspiração para a realização do curta. O que te inspirou a falar sobre a Ilha de Deus? Como surgiu o projeto? Eu moro na Imbiribeira desde pequena, tenho 35 anos. Em toda minha vida sempre ouvi falar que a Ilha de Deus era um lugar muito perigoso. Na época, ela era uma comunidade toda feita de palafita, a ponte que ligava a ilha para o lado de cá era uma ponte de madeira. Tenho vários amigos incríveis, tanto na vila quanto na ilha e cresci ouvindo histórias de violência e vivenciando outras experiencias. Sempre foi uma coisa que talvez mais nova não tenha me atentado, mas já devia ser um incomodo. Em 2009, começaram a construção da ponte Vitória das Mulheres e, na sequência, a construção do conjunto habitacional da ilha. Foi nessa época que comecei a me envolver com cultura. Sempre trabalhei com música e literatura, nunca com cinema. Em 2014, comecei a participar de várias oficinas, de roteiro, produção, direção e numa dessas oficinas decidi escrever sobre a ilha. Sempre foi muito latente a força das mulheres nesse espaço, a luta por moradia, por saneamento básico e pela melhoria da sua realidade. E quando rolou essa transformação, eu achava que não poderia falar sobre outro lugar que não a Ilha de Deus. A força da mulher é muito arraigada nesse espaço e foi isso que me motivou a escrever o roteiro do Entremarés. Qual o maior desafio enfrentado durante a produção do curta? Na verdade, não teve muito desafio, pois desde sempre tenho relação com o espaço, com a comunidade, relação estabelecida com as meninas que aparecem no curta, desde o começo da pesquisa. Não surgiram muitas dificuldades. Tive o cuidado de levar a equipe do filme para a ilha e quando fomos gravar, ficamos a semana inteira, porque uma coisa é você ir passar o dia lá, outra é dormir e acordar com os sons do lugar. A ilha é um espaço singular: na parte do conjunto habitacional há sempre muito barulho de criança, do sururu, de tudo, e quando você se desloca para os viveiros, é um oásis, é barulho de pássaros, de mato, mas também barulho de nada (nem sei se isso existe!). Gosto muito de ir pra lá e gosto muito dessa sensação do muito e do nada. Não teve muito desafio, pois a galera já sabia que eu queria fazer o filme desde 2015 e quando saí pra gravar, rolou um movimento incrível de ajuda, de companheirismo e colaboração de todos os moradores e moradoras da ilha. O maior desafio não foi produzir o filme por lá, mas sim trazê-lo para fora e fazer com que esse estereótipo de lugar violento seja quebrado. Das histórias e vivências que você ouviu das mulheres da Ilha de Deus, qual a que mais mexeu com você? Foram muitas histórias emocionantes que talvez eu nem possa contar, pois são histórias muito particulares, de momentos em que elas abriram o coração mais do que a gente esperava e que sensibilizou muito a gente. Talvez isso esteja de alguma forma no filme. Do que aparece no curta, posso destacar dois momentos: o primeiro é o que Ginha revela que nunca teve nada e quando queria brincar de Barbie com as amigas, vinha para a Pinheiros, uma avenida perto de onde moro e que antigamente tinha casas enormes de muita gente rica que jogava muita coisa fora. Elas pegavam Barbies quebradas para brincar. Se desdobra no momento em que diz que hoje a filha tem tudo, tem Barbie, tem tablet. Outro momento pesado dos relatos das meninas é quando Sandra fala sobre a época em que a mãe delas morreu e ela tinha de ir à maré pescar para dar de comer à Rita, a caçula. Elas só podiam escolher uma refeição por dia. Se for possível revelar agora, quais os projetos para o futuro? Algum longa mais adiante? Sobre o futuro, aprovei outro curta no Funcultura deste ano, se chama Chapéu de Fogo, que é sobre a SOBAC, a Sociedade dos Bacamarteiros do Cabo de Santo Agostinho. Ela já tem 67 anos em atividade, a única da Região Metropolitana. O doc vai trabalhar essa relação dos grupos de bacamarte, desse em específico, em meio a todo crescimento e empresas que se instauraram na cidade, e como eles conseguem integrar um grupo de resistência ainda nesse tempo em que vivemos.