LEONARDO DANTAS SILVA – Revista Algomais – a revista de Pernambuco

LEONARDO DANTAS SILVA

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A noite dos índios pelados

Naquela manhã de 11 de maio de 1644, o Conde João Maurício de Nassau deixou triunfantemente a sua Cidade Maurícia. Montado a cavalo, seguido de um grande séquito de admiradores, cavalgou pelo litoral em busca da Paraíba. A sua despedida de forma apoteótica, como a exaltar o sucesso dos sete anos do seu governo (1637-1644), mereceu de Netscher, escrevendo com a parcialidade de cidadão holandês, uma descrição sentida, com cores fortes e povoada por palavras tomadas de emoção, que vale a pena transcrever: Pelo litoral passou por Olinda, Itamaracá, atingindo a Paraíba onde deveria embarcar, em Cabedelo. Por toda parte recebeu expressivas homenagens que significavam estima, reconhecimento e saudades. Sua viagem tomava o aspecto de uma marcha triunfal. As populações dos lugares por onde ia passando formavam alas para dizer-lhe adeus. Em Cabedelo, um grupo de índios tapuias, afastando os guardas de sua escolta, o transporta, nos ombros, até o escaler que flutuava sobre as ondas, esperando para conduzi-lo até o navio capitânia Zuphen. Somente no dia 22 de maio de 1644 é que a esquadra levanta âncoras, deixando desolados nas praias dezenas de índios que com o Conde Nassau desejavam embarcar para a Holanda. Todo o episódio do seu embarque é também descrito com cores vivas pelo cronista Gaspar Barlaeus (1647). Partiu o Conde de Nassau no mesmo barco que o trouxera ao Brasil em 1637. Ao seu redor navegava uma frota de 13 navios, tripulados por 1.400 marinheiros, armados com 327 canhões, e um carregamento avaliado em 2.600.000 florins, composto principalmente de açúcar, pau-brasil, madeiras de lei (notadamente jacarandá e pau-violeta), fumo, pau-campeche, além de toda a produção de seus artistas e objetos vários, bem como curiosidades pertencentes ao seu museu de antropologia. É desta época a notícia de uma curiosa festa brasileira, promovida pelo Conde de Nassau nos jardins e salões de sua residência na Haia, a Mauritshuis, na presença de nobres e embaixadores acreditados junto aos Países Baixos. Da crônica da vida diária da Holanda são frequentes os comentários sobre esta festa, segundo se depreende da correspondência de muita gente famosa que descreve a festa brasileira com riquezas de detalhes. Os comentários mais frequentes ficaram por conta da apresentação da dança guerreira dos índios pelados, nos mesmos moldes da que foi eternizada em tela por Albert Eckhout. Na ocasião o Conde de Nassau fez apresentar os 11 índios tapuias, que o acompanharam na sua viagem de regresso do Brasil, completamente despidos que com as suas setas e bordunas realizaram a dança ritual. Assinala Jan van den Besselaar no livro Maurício de Nassau Esse Desconhecido que, “entre os convidados se achavam vários predicantes com suas esposas. Para alguns, a representação foi um grande escândalo e, justamente por ser motivo de escândalos para alguns, foi motivo de grande hilaridade para outros”.

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Santos mártires imolados pelos holandeses no Rio Grande do Norte em 1945

*Por Leonardo Dantas Silva Quando das Guerras com a Holanda (1630-1654), se transportou para o Nordeste do Brasil, os propósitos da Guerra Religiosa, que grassava em Flandres e nos Países Baixos, entre católicos, calvinistas e luteranos desde a segunda metade do Século 16. Em 16 de julho de 1645, na localidade de Cunhaú, no hoje município de Canguaretama, no Rio Grande do Norte, uma tropa holandesa de 200 homens, comandados pelo alemão Jacob Rabi, juntamente com um grande número de índios tapuias e potiguares, dizimaram 69 habitantes locais que assistiam à missa dominical na igrejinha de Nossa Senhora das Candeias. Matança semelhante veio se repetir, dias depois, no povoado próximo, Uruaçu. Ali também foram dizimados Mateus Moreira e dezenas de outros homens; repetindo os índios os mesmos atos de antropofagia de Cunhaú devorando, ainda vivos, os corpos de suas vítimas, retirando deles os olhos, a língua, o pênis e outras partes. Por causa de tais atrocidades, os portugueses passaram a fio de espada cerca de 200 outros índios que lutaram ao lado dos holandeses, quando da Batalha de Casa Forte (Recife), em 17 de agosto de 1645. Esses fatos motivaram um longo processo de canonização por parte da Igreja Católica, concluído recentemente pelo Papa Francisco, em solenidade acontecida no domingo 15 de outubro do ano de 2017, quando declarou santos os 30 Mártires de Cunhaú e Uruaçu, massacrados no Rio Grande do Norte em 16 de julho de 1645. A cerimônia de canonização foi presidida pelo Papa Francisco e contou com 450 concelebrantes, assistida por aproximadamente 50 mil pessoas, que lotavam a Praça de São Pedro em Roma. Na ocasião, o Papa Francisco declarou santos os mártires potiguares, após o pedido oficial durante a cerimônia celebrada pelo cardeal Angelo Amato, prefeito da congregação da Causa dos Santos. “Que estes que agora são santos indiquem a todos nós o verdadeiro caminho do amor e da intercessão junto ao Senhor para um mundo mais justo”, declarou o Papa Francisco, em sua homilia. Por causa desses episódios, a história nos relata o sentimento de abandono que veio a tomar conta dos habitantes de Pernambuco que, em outubro de 1645, resolveram redigir um longo manifesto narrando o clima de terror que estavam vivendo sob o domínio holandês. Manifesto dos cidadãos de Pernambuco publicado para sua defesa sobre a tomada de armas contra a Companhia das Índias Ocidentais, dirigido a todos os príncipes cristãos e particularmente aos Senhores Estados dos Países Baixos Unidos. Numa das versões do documento, escrito em espanhol, como se depreende da cópia original, pertencente ao Instituto Ricardo Brennand do Recife, são descritas algumas das atrocidades perpetradas pelos holandeses e índios antropófagos, seus aliados, que a eles eram entregues, para alimentação, os corpos das vítimas dos seus soldados. “Sendo bem servidos pelos selvagens tapuias a quem animavam [os holandeses] como a tigres e lobos sangrentos, que diante dos seus olhos comiam os corpos mortos daqueles que haviam matado, feito tão abominável que nem os antigos tiranos cometeram tal crueldade. Nas praças onde paravam para repousar e comer os que os recebiam amigavelmente em suas casas eram mortos e como recompensa da sua cortesia e pagamento pela comida que aqueles cristãos haviam dado a cristãos, davam-se seus corpos como comida para os selvagens.” No ano seguinte (1646), o embaixador Francisco de Souza Coutinho, de posse de cópia desse manifesto, bem como dos relatórios de funcionários da Companhia, descontentes com o clima de terror insuflado pelo Governo do Recife, fez publicar uma série de panfletos, traduzidos para o holandês, denunciando a triste situação em que viviam os habitantes de Pernambuco. “Não há infâmia tão grande nem descortesia que não tenham usado contra as mulheres; depois de terem abusado delas desonestamente, e as filhas aos olhos dos pais e as mulheres casadas na presença de seus maridos as davam como regalo aos selvagens, que depois de satisfazerem seus intentos bestiais, as matavam e comiam. É verdade que não era a maior crueldade matá-las, porque depois da infâmia de desonrá-las e violá-las, elas mesmas prefeririam a própria morte por acharem- -se privadas de sua honra. Os ouvidos humanos têm horror de escutar tais coisas, mas os da Companhia tiveram olhos para vê-las e permitir tais crueldades, não apenas a um, mas a muitas de nossas pequenas crianças arrancaram os selvagens dos seios de suas mães. Assados e guisados como prato muito delicado. Comum entre eles um provérbio que dizia que os holandeses vieram ao Brasil para castigar os pecados dos portugueses, no que também concordamos e confessamos diante de Deus que bem merecemos tal castigo por nossos pecados, mas que tenham conosco segundo sua grande misericórdia e como um pai benigno que após haver castigado seus filhos lança o açoite ao fogo. Nossa perdição não foi apenas termos caído nas mãos de senhores cruéis e que tinham ódio mortal contra a nação [portuguesa], mas também extremamente apegados ao dinheiro; e passada toda a fúria sangrenta dedicaram-se com afinco a tomar-nos nossos bens justa ou injustamente.” Esses panfletos eram impressos em oficinas apócrifas e distribuídos nas ruas, de modo a levantar a opinião pública contra os dirigentes da Companhia das Índias Ocidentais, com sede em Amsterdã. Esta, por sua vez, incomodada com tamanho noticiário, veio à forra [levar a efeito uma vingança; desforrar-se, vingar-se], denunciando, pela imprensa, a deslealdade de Portugal e a duplicidade de D. João IV ao apoiar, de forma escusa, o movimento separatista de Pernambuco.

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Calabar, o grande desertor

*Por Leonardo Dantas Silva Durante a Guerra Holandesa (1630-1654), do lado das forças da resistência, comandadas pelo general Matias de Albuquerque, são constantes as deserções e atos de traição, como se vislumbra da leitura das Memórias Diárias, escritas pelo próprio donatário, Duarte de Albuquerque Coelho, irmão do general comandante. De todos esses fatos, o que mais causou impacto, foi o episódio da deserção do mulato Domingos Fernandes Calabar, em 20 de abril de 1632. Tal acontecimento é atribuído pelos cronistas da Guerra Brasílica como a principal causa da perda da capitania de Pernambuco para as forças de ocupação holandesas. Com a sua ajuda e orientação foram tomadas as vilas de Igarassu (1632), Rio Formoso (1633), Itamaracá (1633), Rio Grande do Norte (1633) e Nazaré do Cabo (1634). Pouco se sabe dos seus motivos em trair os portugueses, passando-se de armas e bagagem para o lado dos holandeses. Dos relatos e documentos de então informam apenas que era ele filho da negra Ângela Álvares com um português de nome desconhecido, nascido em 1609, na vila alagoana de Porto Calvo, que tomou parte ativa na guerra desde o seu primeiro momento. Fora ele ferido, em 14 de março de 1630, quando na defesa do Arraial do Bom Jesus, estando processado por alguns crimes pela justiça do Rei de Espanha. Fora ele citado no diário de um seu contemporâneo, o oficial inglês Cuthbert Pudsey, que entre 1629 e 1640 esteve a serviço da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil. “Por esse tempo veio até nós um português chamado Domingos Fernandes [Calabar], que por haver estuprado uma mulher na região de Camaragibe, e para que depois ela não contasse quem havia feito isto, cortou-lhe a língua da boca. Vivera como renegado por cerca de dois anos entre os portugueses. Então, tendo vindo servir aos holandeses, foi feito capitão. Graças a seus conselhos e meios molestamos muitíssimo o país, sendo ele um sujeito intrépido e político, sabedor de todas as picadas e caminhos através de toda a terra, jactando-se de nada mais fazer senão dano aos portugueses. Sendo ele mesmo um mulato, isto é, com um pai português e uma mãe negra. Desta espécie achamos muitos sujeitos intrépidos. Graças aos seus conhecimentos da região e do aprendizado rápido da língua holandesa, Calabar logo cativou as autoridades militares e administrativas neerlandesas, gozando das simpatias e recebendo carinho e atenções por parte dos mais grados. Convivia ele com as figuras mais representativas de sua época e, para um mestiço do seu tempo, tal tratamento contribuiria para massagear de sobremaneira o seu ego de mulato e o animava na conquista de novos postos em sua carreira militar, na qual veio a atingir o posto de capitão com o soldo de sargento-mor. Seria este, quem sabe, talvez o principal motivo que o fez grato aos superiores holandeses, quando a sua condição de mulato, filho de pai desconhecido, o impediria de receber tais honrarias e simpatias por parte dos senhores da terra e da oficialidade portuguesa. Seu prestígio social junto aos novos aliados tornou-se patente quando do batizado do seu filho com Ana Cardosa, na igreja reformada do Recife. Segundo anotações no Livro Batismal 1633 -1654, conservado no Arquivo Municipal de Amsterdã (Gementes Archief Amsterdam), sob o nº 379/211, estiveram presentes ao batizado do menino Domingos Fernandes Filho, em 20 de setembro de 1634, o alto conselheiro Servatius Carpentier (também médico e senhor do engenho Três Paus), o coronel alemão Sigmund von Schkoppe, o coronel polonês Chrestofle d’Artischau Arciszewski e uma senhora da alta sociedade do Recife não identificada. O fato vem demonstrar a importância social de que gozava o mestiço Domingos Fernandes Calabar quando, em simples solenidade familiar, reúne um represente do alto Conselho e os dois principais chefes do Estado Maior do Brasil Holandês. Outro gesto de consideração do governo do Brasil Holandês para com a memória de Calabar, se dá quando do pedido de sua viúva em favor dos seus três filhos órfãos, em data de 13 de abril de 1636. Na ocasião, “considerando os grandes serviços feitos à Companhia pelo seu falecido esposo”, o Conselho Político concedeu uma pensão de 8 florins por mês a cada uma das crianças, segundo informa José Antônio Gonsalves de Mello in Tempo dos flamengos. Após a derrota das tropas que defendiam o Arraial do Bom Jesus, Matias de Albuquerque, que se encontrava em Nazaré do Cabo, inicia sua marcha em direção à Bahia. No caminho, ao passar pela povoação de Porto Calvo, no atual território de Alagoas, comandando um pequeno exército de 140 homens, resolve tomar aquele baluarte até então em mãos dos holandeses. Para isso contou com a colaboração de Sebastião Souto, que fez o chefe holandês, major Alexandre Picard, crer na vantagem numérica das forças da resistência. Porto Calvo vem a se render em 19 de julho de 1635. Nos termos da rendição uma das condições impostas por Matias de Albuquerque ao major holandês que comandava uma tropa de pouco mais de 360 homens, seria a entrega de Domingos Fernandes Calabar e do judeu Manuel de Castro, este último servindo aos holandeses nas funções de almoxarife da povoação. Foi Manuel de Castro de imediato condenado pelo Auditor Geral “que o mandou enforcar em um cajueiro”, ficando Calabar para o dia seguinte. Entregue Calabar às forças de Matias de Albuquerque, seu julgamento sumário e sua execução passam a ser descritos com cores fortes e detalhes minuciosos pelo frei Calado, encarregado pelo general de acompanhá-lo nos seus últimos momentos. Prisioneiro Calabar, foi ele submetido a um julgamento sumário, em 22 de julho de 1635, sendo condenado à morte por garroteamento pelo general Matias de Albuquerque na ocasião representando a pessoa do próprio rei, “pois era seu general naquela guerra”, sendo acusado o prisioneiro de “muitos males, agravos, extorsões que havia feito”. Após a sentença foi o condenado assistido pelo frei Manuel Calado que o ouviu em confissão e com ele ficou conversando, “das oito da manhã ao meio-dia”, ocasião em que relacionou os nomes dos seus credores, bem como

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Frei Caneca, o mártir esquecido

Certa vez em visita ao Recife, o então governador de Santa Catarina, Esperidião Amin, desejou conhecer os Montes Guararapes, onde visitou a igreja de Nossa Senhora dos Prazeres, e o monumento em honra ao mártir pernambucano Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. O levaram ao Largo das Cinco Pontas, onde se encontra um pequenino busto e o resto de parede com uma lápide em mármore, assinalando o local do seu suplício em 13 de janeiro de 1825. Extasiado, indagou o visitante se era tudo que existia no Recife em memória de tão ilustre liberal, e ao obter a confirmação exclamou irritado: “É muito pouco para um Grande Brasileiro!” Os tempos passaram e nada foi feito para avivar a memória do mártir maior da Confederação do Equador (1824), restringindo-se tudo ao pequenino busto (hoje desaparecido), junto a um resto de muro no qual se encontra afixada uma placa em mármore, com inscrição em letras pretas maiúsculas, ali colocada pelo Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano na data de 2 de julho de 1917: Neste largo foi espingardeado junto à forca, a 13 de janeiro de 1825, por não haver réu que se prestasse a garroteá-lo, o Patriota Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. Republicano de 1817, e a figura mais notável da Confederação do Equador em 1824. Nascido em Fora de Portas, de uma família pobre do Recife, em agosto de 1779, Joaquim do Amor Divino Rabelo entrou para o convento carmelita de sua cidade em 1796. Ordenando-se em 1801, substituiu o seu nome de família pelo apelido dado a seu pai, que tinha a profissão de tanoeiro. Logo se notabilizou pelos seus conhecimentos de retórica e geometria, direito, filosofia racional e moral, com incursões nos estudos da mecânica e cálculo matemático. Foi membro da Academia do Paraíso, e teve participação inflamada no movimento que instalou a República em Pernambuco, em 6 de março de 1817, tendo sido levado preso aos cárceres da Bahia, onde penou por quatro anos, sendo dele esses versos: Não posso cantar meus males Nem a mim mesmo em segredo; É tão cruel o meu fado, Que até de mim tenho medo. Decretada a anistia pelas Cortes Portuguesas, em 1821, voltou frei Caneca ao Recife e, após o episódio da dissolução da Constituinte pelo imperador Pedro I, resolveu fundar o jornal Typhis Pernambucano, principal divulgador das ideias liberais que viriam a ser defendidas pela Confederação do Equador (1824). O jornal circulou entre 25 de dezembro de 1823 e 12 de agosto do ano seguinte, tendo sido impressas 29 edições, transformando-se no ideário dos liberais de então, partidários de Manoel de Carvalho Paes de Andrade. Com a província de Pernambuco invadida pelas tropas imperiais, é proclamada, em 2 de julho de 1824, a Confederação do Equador, movimento separatista de caráter republicano que mais uma vez põe em armas os liberais pernambucanos. Derrotados no Recife, os revoltosos iniciam penosa marcha em direção ao Ceará, episódio narrado com cores fortes pelo próprio Frei Caneca no seu Itinerário. Presos e agrilhoados retornaram ao Recife, onde o frade vem a ser condenado à forca em sentença expedida em 10 de janeiro de 1825. Debalde o Cabido Metropolitano (colegiado de cônegos responsável pela administração da Diocese) comparece em procissão ao Palácio do Governo pedindo a suspensão da pena. Em represália os cônegos negaram-se a desautorar suas ordens tornando nulo, perante o direito canônico, todos os atos que se seguiram. A execução foi marcada para a manhã de 13 de janeiro de 1825. Na prisão mais uma vez escreve versos, despedindo- se dos amigos e das suas filhas, por ele chamadas de “afilhadas das minhas entranhas”, dormira sereno a sua última noite e, na manhã seguinte, marchou com altivez em direção ao patíbulo. Diante de tal cena o inesperado aconteceu: carrascos convocados para execução da pena capital negaram-se executá-la, pouco se importando com as promessas e com os suplícios que lhes foram impostos pela tropa. Diante do impasse foi à pena transformada em execução por espingardeamento, o que aconteceu no Largo das Cinco Pontas, “por não haver réu que se prestasse a garroteá-lo”. Quem passa a vida que eu passo, Não deve a morte temer; Com a morte não se assusta Quem está sempre a morrer. Os seus restos mortais vieram a ser sepultados no Convento do Carmo, em local não determinado, o seu nome, porém, é hoje reverenciado pela grande maioria das capitais do Brasil, onde sempre existe uma Rua Frei Caneca, muito embora continue esquecido na terra que lhe serviu de berço. E observem que foi criada uma Comissão de Notáveis destinada a elaboração das Comemorações dos 200 anos da Revolução Republicana de 1817, instituída com “pompa e circunstância” pelo governador Paulo Câmara! O que fez esta Comissão de Notáveis no transcurso da morte de Frei Caneca, um dos mártires de 1817 e a principal cabeça pensante da Confederação do Equador?

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Guararapes, o imaginário da fé

Por sua importância na formação histórica da nacionalidade brasileira, as colinas de Guararapes vieram a ser consideradas Monumento Nacional no ano de 1964; quatro anos depois, com a indenização paga aos monges beneditinos de Olinda, deu- -se início ao processo de desapropriação e criação do Parque Histórico Nacional dos Montes Guararapes, criado pelo Decreto Federal nº 68.527, de 19 de abril de 1971. Três colinas – conhecidas como Morro do Telégrafo, Morro da Ferradura e Morro do Oitizeiro – compõem os 225,40 hectares do Parque Histórico dos Montes Guararapes. Em seu sopé, travaram–se duas das mais renhidas batalhas contra os exércitos holandeses que ocupavam o Nordeste do Brasil desde 1630. Na primeira, em 19 de abril de 1648, 5 mil soldados da Companhia das Índias Ocidentais, sob o comando do general Sigmund von Schkoppe, foram derrotados por 3.500 combatentes comandados por João Fernandes Vieira, Vidal de Negreiros, Filipe Camarão e Antônio da Silva. Nas baixas do exército holandês figuravam 523 feridos e 515 outros, entre mortos e prisioneiros, dos quais 46 oficiais. No confronto, perderam as vidas os coronéis Hendrick van Haus, Cornelis van Elst e Servaes Carpentier, ficando feridos o general von Schkoppe e o coronel Guilherme Houthain. Do lado dos luso-brasileiros foram computados 84 mortos e mais de 400 feridos. A segunda batalha dos Montes Guararapes aconteceu 10 meses depois, em 19 de fevereiro de 1649, quando 2.600 homens que integravam as tropas luso-brasileiras, sob o comando do general Francisco Barreto de Menezes, vêm derrotar 3.510 combatentes do exército da Companhia das Índias Ocidentais comandados pelo tenente-general Johan van den Brincken. A derrota nas duas refregas veio a se tornar nos maiores fracassos da história dos exércitos holandeses. Enquanto nas perdas do lado luso-brasileiro foram computados 47 mortos e 200 feridos, do lado dos invasores perderam a vida o comandante-geral, tenente-general Johan van den Brincken, o vice-almirante Giesseling e 101 outros oficiais que, somados às demais baixas, perfaziam um total de 1.044 mortos e mais de 500 feridos. Estava, assim, selado o fim do Brasil Holandês em terras do Nordeste brasileiro: cinco anos mais tarde, acontece a rendição das tropas ocupantes, assinada por Sigmund von Schkoppe em 26 de janeiro de 1654. Em memória das duas batalhas dos Montes Guararapes, ocorridas nos anos de 1648 e 1649, o general Francisco Barreto de Menezes, mestre-de-campo, general do Estado do Brasil e governador da capitania de Pernambuco, mandou erguer uma capela em louvor a Nossa Senhora dos Prazeres. A partir de 1656, como era de se esperar, as gerações de pernambucanos que se sucederam jamais esqueceram os feitos gloriosos de seus antepassados, atribuindo à providência divina as vitórias de nossos desprovidos e despreparados exércitos contra forças numericamente superiores, adestradas e infinitamente bem armadas. Entende o imaginário pernambucano que fora a excelsa padroeira da Igreja dos Montes Guararapes a responsável pelas vitórias aqui alcançadas, daí sua presença nos painéis comemorativos mandados confeccionar pela Câmara de Olinda, em 1709, e nos dois da própria igreja, confeccionados em 1801, possivelmente pelo pintor José da Fonseca Galvão, e atualmente integrantes do acervo do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Como centro de devoção e romarias, o santuário dos Montes Guararapes já era conhecido no Século 18, com a documentação da existência das casas destinadas aos romeiros de 1734. Sua festa, instituída por seu fundador em comemoração às vitórias alcançadas sobre os holandeses, que acontece anualmente na segunda segunda- feira após o Domingo de Páscoa, tomou caráter mais popular que religioso, sendo descrita com detalhes curiosos por Bernardino Freyre de Figueiredo Abreu e Castro, quando da publicação de seu romance, Nossa Senhora dos Guararapes, impresso no Recife em 1847. Já naquele tempo trazia em seu bojo uma forte presença das nações africanas – cabindas, cabundá, malabar, além dos devotos em geral, sendo marcada por verdadeiros banquetes regados por “vinhos portugueses das mais diferentes e consagradoras marcas”. Para o padre Lino do Monte Carmelo Luna, a festa se estendia por oito dias numa mistura de religiosidade e paganismo, venerando- se os santos padroeiros dos altares laterais e figuras de orixás criadas pelo imaginário do sincretismo religioso afro-brasileiro. O abade do Mosteiro de São Bento de Olinda, D. Pedro Roeser, nos dá informes curiosos sobre a Festa dos Prazeres, mostrando que, há mais de um século, o sincretismo religioso encontra-se presente como sendo “um exemplo de mistura de catolicismo e paganismo”. A festa de Nossa Senhora dos Prazeres era de grande pompa. Prolongava-se por oito dias. O primeiro era dedicado à Nossa Senhora do Rosário, o segundo à Nossa Senhora dos Prazeres, o terceiro à Senhora Santana, o quarto a São Gonçalo, o quinto ao Bom Jesus das Bouças, o sexto à Nossa Senhora da Soledade, o sétimo à Nossa Senhora da Conceição e o oitavo ao Deus Baco.

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Frevo mete medo a quem não é do Recife…

*Por Leonardo Dantas Silva (Foto: Frevo na Praca do Diario, por Pierre Verger – 1947) N a visão do escritor Mário Sette, tratava-se apenas do frevo… “O frevo! Um imperativo de loucura, um contágio de desatinos, uma coceira de alegria. Ninguém mais se continha, ninguém mais se governava. Todas as imediações do bairro atravessado pelo buliçoso cordão carnavalesco vibravam ao zumbido fortíssimo do contentamento. Nas ruas mais afastadas o povo parava, ouvia os acordes ásperos da orquestra, orientava-se, e disparava de novo, entre avisando-se: – Vem pelo Pátio do Terço, minha gente!– Vamos esperar ele na esquina da igreja.– Eu vou atalhar no Livramento. Você acredita que este cenário, aqui descrito, pode meter medo em quem não é do Recife? O que, para nós, é apenas o frevo, para quem não é da terra se transforma em sinônimo de pavor quando passistas, endemoniados, tomam conta das ruas. Para o escritor Mário Sette, in Seu Candinho da Farmácia (1933) “era apenas o frevo” que tomava conta das ruas estreitas do bairro de São José, mas para a garota Maria Lia Faria, aquela multidão de homens, empunhando sombrinhas, com os seus corpos suados, pulando ao som de uma fanfarra de metais, tornara-se uma onda que ameaçava quem estivesse no seu trajeto. Recém-chegada do Rio de Janeiro, Maria Lia (que veio a ser mãe do nosso José Paulo Cavalcanti), veio residir no Parque Treze de Maio e, no seu primeiro Carnaval, em 1939, se viu diante de um clube carnavalesco pedestre, trazendo sua fanfarra a executar agudas notas, acompanhada de uma percussão que levava a multidão à loucura… Aquela onda de homens a pular contritos, no ruge-ruge de corpos, sisudos e circunspectos, acompanhando os agudos acordes dos trombones e trompetes, causou espanto, seguido de medo e pavor, naquela adolescente que tentava se aclimatar aos costumes de sua nova cidade. Tal não foi a surpresa quando, naquele mesmo Carnaval, ao adentrar-se nos salões do Clube Internacional constatou que no Recife a festa tinha outras características. Poucos pares enlaçados, como era comum no Rio de Janeiro e em outras capitais, mas muita gente pulando ao som do frevo da Orquestra de Nelson Ferreira, não com a violência que acontecia nas ruas, “coisa de doido de cabra assanhado”, mas moderadamente, comportadamente, a cantar a plenos pulmões as marchas românticas compostas por Capiba, Irmãos Valença e outros mais. Neste mesmo Carnaval, a Maria Lia vem a conhecer, também, o Maracatu Elefante a desfilar pelas ruas, ao som dos seus bombos e atabaques, que lhes trouxe de volta às melodias que aprendera a cantar na cozinha de sua casa do Rio de Janeiro, quando as empregadas entoavam loas dos terreiros de candomblé. Naquele balanço, naquele gingado, a menina se sentiu em casa; “na sua praia”, como se diz em nossos dias…

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A história do primeiro frade negro

*Por Leonardo Dantas Silva Nasceu em 1609, de origem humilde, era conhecido pelo apelido de Pretinho. Com a invasão holandesa, em janeiro de 1630, logo apresentou-se ao comandante Henrique Dias (falecido em 1662), passando a integrar os exércitos nativos que, durante cinco anos fizeram parte as resistência luso-brasileira do Arraial do Bom Jesus. Durante 24 anos serviu à sua Pátria, pelejando ao lado dos guerreiros comandados pelo Governador dos Crioulos, Negros e Mulatos do Brasil, e, após a rendição de 26 de janeiro de 1654, resolveu ingressar na Ordem Franciscana dos Frades Menores no Convento de Nossa Senhora das Neves de Olinda. Não consta a data do seu ingresso no Convento Franciscano de Olinda, mas, segundo Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão (1695- 1769) era a ele atribuída uma vida religiosa, cuidando dos serviços interiores da casa, “de muita abstinência e sumamente caritativo”. Por mais que se dedicasse aos deveres da ordem, o frei Francisco de Santo Antônio, não conseguia sua promoção ao sacerdócio por conta de sua cor, sendo debalde todos os seus pleitos junto os seus superiores. O acidente da cor, como se atribuía na época, era causa impeditiva da conquista do sacramento da ordem sacerdotal. Vendo que todos os seus esforços seriam inúteis em Pernambuco, embarcou para Portugal com o objetivo de levar o seu desejo ao conhecimento do monarca D. Pedro II (1648-1706). Depois de suportar muitas grosserias das figuras da Corte, o Frei Pretinho, como era conhecido, consegue ser recebido pelo rei e, entre lágrimas de júbilo e agradecimento, recebe a ordem real determinando o seu ingresso no Noviciado do Convento Franciscano de Olinda, em 2 de agosto de 1689, quando contava com a idade de 80 anos. Seis anos depois, em data de 1º de agosto de 1695, celebra ele a sua primeira missa, no próprio Convento Franciscano de Olinda, mas vem falecer completando seu dilatado curso de vida gozando da fama de virtuoso e de santidade. Falecera Frei Francisco de Santo Antônio, com a idade de 86 anos, tornando-se, além de herói do Terço dos Henriques, o primeiro afrodescendente admitido como irmão professo no Brasil. Comenta Francisco Augusto Pereira da Costa: “Ele suportou heroicamente toda a oposição que lhe moveram, todos os embaraços que se lhes apresentaram, mas viu coroados os seus intentos, e viu triunfar a causa da igualdade e da fraternidade, e despeito dos prejuízos da época, dessa desigualdade que se procurou manter nas ordens religiosas”

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Conheça a história do jesuíta Manuel de Morais: o padre traidor

Para algumas fontes holandesas, uma das grandes perdas para as forças luso-brasileiras foi a passagem para o lado dos invasores do jesuíta paulista Manuel de Moraes, quando da tomada da Paraíba em 30 de dezembro de 1634, pelas tropas comandadas pelo coronel Chrestofle d’Artischau Arciszewski, segundo assim descreve o autor das Memórias Diárias: “O padre Manuel de Moraes com um lenço em um pau foi render- -se ao inimigo, tão esquecido das obrigações de sua profissão, que a este juntou o maior, que foi casar-se depois em Amsterdã, sendo sacerdote e pregador apostólico, e abraçar a seita de Calvino!” Era esse jesuíta um grande conhecedor da língua dos indígenas, revelando-se posteriormente autor do Dicionário da Língua Tupi e de História da América, cujos originais receberam mais tarde elogios do filólogo Hugo de Groot. Exercia papel da maior importância entre as forças da resistência, como comandante das milícias indígenas a quem ensinara as técnicas da guerra de guerrilhas. Dele testemunhava, em 1631, Matias de Albuquerque: “pelejava com tão notável zelo e ardis como se fora sua profissão a guerra e milícia”. Por sua vez, era visto por fontes holandesas na Paraíba para onde se transferiu, como “a maior autoridade sobre todos os selvagens daquela região”. Mestiço, descrito por uns como mulato e por outros como mameluco, ele vivia há sete anos entre os indígenas e, mais recentemente, se encontrava empenhado em ministrar táticas de guerra volante. Dentre os seus aplicados alunos figurava o futuro herói da restauração e futuro dom, Antônio Filipe Camarão, que vem a ser seu sucessor no comando daqueles batalhões. Constrangido por ter perdido a função de capitão geral dos índios para o seu aluno Antônio Filipe Camarão, o padre Manuel de Moraes aproveitou a rendição da Paraíba para aderir à causa dos holandeses, renunciando sua fé católica e tornando-se um pregador luterano. Caindo nas boas graças do comandante Arciszewski, o padre ganhou notoriedade ao renunciar à teologia católica, tomando-se de paixão pelos ensinamentos da igreja reformada. Sua inesperada adesão, logo se transformou em propaganda da igreja reformada: “Padre torna-se protestante”. Foi o padre Manuel de Moraes de logo enviado aos Países Baixos a fim de melhor aprimorar seus estudos teológicos. Na Holanda, logo aprendeu a língua local e em pouco tempo veio a casar-se com a jovem Margaretha van der Heide, irmã do mestre dos pesos de Gelderland. Fixando moradia em Amsterdã, transformou-se de guerrilheiro em pregador devotado, conhecido por suas preleções nos púlpitos dos templos contra a doutrina e dogmas da igreja católica romana. Ainda nesta cidade escreve alguns textos científicos e, por causa do falecimento de sua mulher, transfere-se para Leiden onde se matricula na universidade local em 27 de julho de 1640, apresentando-se como Lusitanius Licenteatus Theologiae. Nesta cidade ele tenta a publicação do seu Dicionário da língua Tupi e de sua História da América. Sua vida afetiva, porém, toma novas cores quando do seu casamento com a jovem Anna Smits, uma das mais belas jovens de Leiden, que logo se tornou enfeitiçada pelo seu charme de mulato brasileiro. Apesar de sua aparência de homem “feio, preto, cara de chim”, segundo depoimento de Dona Anna Paes, “veio ele a se casar na Holanda com uma das moças mais formosas do país”. O segundo casamento, ao que parece, pouco durou, pois o padre apóstata se transfere para Amsterdã e lá tem um encontro secreto com o Núncio Apostólico, junto ao Reino dos Países Baixos, “onde se mostrou arrependido de sua escapada protestante e confessou seus pecados ao representante do papa que lhe deu absolvição”. Deixando na Holanda mulher e filhos, bem como amigos de prestígio como o historiador Jan de Laet, que tece elogios a sua inteligência, o padre Manuel de Moraes volta a sua terra a fim de explorar o corte de pau-brasil em área que lhe fora arrendada pela Companhia. Após algum tempo, João Fernandes Vieira, sabedor do retorno do padre apóstata o manda prender e logo que este chega à sua presença é acometido de grande arrependimento: “prostrou-se aos seus pés e com copiosas lágrimas, que lhe corriam sem cessar, lhe pediu encarecidamente que lhe desse uma palavra em seu aposento, com mostras de grande arrependimento, para que fosse um de seus soldados e assim se eximir do castigo que temia”. Abandonando a causa dos flamengos, tornou o padre aos exércitos dos insurrectos servindo com ardor, ao lado de João Fernandes Vieira, à causa da Insurreição Pernambucana, sendo o seu nome anotado por Diogo Lopes Santiago quando da batalha dos Montes das Tabocas, na qual participou exortando os soldados e rezando em voz alta suas orações, até a vitória final em três de agosto de 1645. Após o sucesso das tropas insurrectas em Tabocas e Casa Forte, foi o padre Manuel de Moraes enviado por João Fernandes Vieira à Lisboa, com a missão de narrar a D. João IV os feitos obtidos pelos exércitos da terra contra os holandeses. Durante essa temporada foi ele preso pela Inquisição de Lisboa e ali respondeu a processo, cujo teor vem a ser publicado na Revista do Instituto Histórico Brasileiro (v. LXX, Rio de Janeiro 1908). Da leitura de suas páginas se depreende que o religioso apresentou a seu favor “um perdão do Papa para sua apostasia ao catolicismo”, assegurando em seu depoimento “ter sido ele o único jesuíta preso a quem as autoridades nos Países Baixos haviam proibido de regressar ao Brasil, por temerem que levantasse o gentio contra o governo do Recife”.

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Os protomártires da nossa independência

Faltando pouco mais de um mês para o bicentenário da Independência do Brasil, pouco se espera das comemorações oficiais, inclusive em Pernambuco, onde 30 dos nossos protomártires pagaram com suas vidas pelo ideário de liberdade cultivado em movimentos sediciosos do passado. Quem transita pela Praça da República, através dos seus jardins projetados por Roberto Burle Marx (1909-1994), cercada por monumentos como o Palácio do Governo (1841), o Teatro de Santa Isabel (1850), o Liceu de Artes e Ofícios (1880), o Palácio da Justiça (1930) e o prédio da Secretaria da Fazenda (1944), mal desconfia que o seu solo encontra-se embebido pelo sangue de 8, dos 12 mártires pernambucanos que deram suas vidas em favor da causa da liberdade, quando do Movimento Republicano de 1817. No início do Século 19, quando a atual Praça da República era chamada de Largo do Erário, serviu de cenário à solenidade da Bênção das Bandeiras dos Revolucionários de 1817, ocorrida em data de 3 de abril daquele ano. Pavilhão que, um século depois, voltou a tremular em nossos céus, transformado que foi em Bandeira oficial do Estado de Pernambuco (1917). O local veio a ser chamado de Campo da Honra, em memória aos oito mártires pernambucanos que pagaram com suas vidas pela participação naquele movimento pioneiro de implantação de uma República em terras da América Latina. Em 8 de julho de 1817, foram ali enforcados e esquartejados os capitães Domingos Teotônio Jorge Martins Pessoa e José de Barros Lima (o Leão Coroado), e o padre Pedro de Sousa Tenório (Vigário Tenório). Seguindo-se da execução dos mártires Antônio Henrique Rabelo, Amaro Coutinho, José Peregrino Xavier de Carvalho, Inácio de Albuquerque Maranhão e o padre Antônio Pereira de Albuquerque. Em memória dos Mártires da República de Pernambuco de 1817, foi erigido em 1987 um monumento, moldado em cimento pelo escultor Abelardo da Hora (1924-2014); sob o patrocínio do Governo de Pernambuco, atendendo sugestão do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano; na alameda em frente ao Palácio da Justiça. Estranhamente, nenhum dos que morreram pela causa da nossa liberdade, teve o seu nome assinalado naquele monumento! Na sua base, apenas aparecem transcritos os nomes dos contemporâneos que promoveram tal homenagem (!) No período em que frequentei como Membro do Conselho de Preservação do Patrimônio Histórico-cultural do Estado de Pernambuco, apresentei projeto, aprovado pela unanimidade dos demais conselheiros, no sentido de fazer gravar no granito, os nomes dos 30 Protomártires da Pátria, imolados nos movimentos libertários ocorridos quando da Proclamação da República de 1710, em Olinda; da República Pernambucana de 1817 e da Confederação do Equador de 1824.

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Pieter Post, o criador da cidade Maurícia

Quando de sua chegada ao Recife, em 1637, um dos principais problemas enfrentados pelo Conde João Maurício de Nassau foi a falta de moradia. A carência de habitações fazia com que os aluguéis se tornassem seis vezes mais caros do que em Amsterdã; segundo aponta documento da época ao narrar que “as casas da Companhia são verdadeiras pocilgas […]; em um só quarto, ou melhor, na dita pocilga, caixeiros, assistentes e escriturários são alojados, em número de três, cinco, sete e oito como se fosse numa enfermaria…”. Para sanar tal problema, o Conde de Nassau deu celeridade à construção, na ilha de Antônio Vaz (hoje, Santo Antônio), do que veio a ser a Cidade Maurícia (Mauritzstaden). Iniciou a urbanização dessas área segundo um plano do arquiteto Pieter Post, que contemplava ruas, praças, mercados, canais, jardins, saneamento, pontes, devidamente demarcadas conforme se vislumbra em mapa da época publicado na obra de Gaspar van Baerle, ou Gaspar Barlaeus (Amsterdã, 1647). A nova urbe, segundo o traçado de Pieter Post (1608 – 1669), um dos principais representantes, ao lado de Jacob van Campen, do classicismo arquitetônico nos Países Baixos, trouxe um surto de progresso para a capital do Brasil Holandês. Coube ao Conde de Nassau realizar no Recife uma verdadeira revolução no âmbito da paisagem urbana; com o surgimento de uma nova cidade. Na ocasião foram construídos o Palácio de Friburgo (Vrijburg), também conhecido como Palácio das Torres, e a Casa da Boa Vista (1643). Foi João Maurício o responsável pela instalação do primeiro observatório astronômico das Américas, no qual Georg Marcgrav fez, dentre muitas outras, anotações acerca do eclipse solar de 13 de novembro de 1640 (Barlaeus). Ainda por essa época foi erguido o templo dos calvinistas franceses (1642), obedecendo ao traço do mesmo Pieter Post. A nova cidade se estendia até as imediações do atual Forte das Cinco Pontas, ocupando todo bairro de São José. Nela, tratou-se também do calçamento de algumas ruas e do saneamento urbano, além da construção de três pontes; as pioneiras em grandes dimensões no Brasil. A primeira delas ligando o Recife à Cidade Maurícia (a nova cidade erguida na ilha de Antônio Vaz), inaugurada em 28 de fevereiro de 1644, uma segunda, ligando essa ilha ao continente, na altura da Casa da Boa Vista (imediações do Convento do Carmo) e uma terceira sobre o rio dos Afogados. Sobre a construção dessas pontes, comenta o padre Antônio Vieira, no seu Sermão de São Gonçalo, a propósito da administração portuguesa no Brasil, assinalando ser “cousa digna de grande admiração e que mal se poderá crer no mundo, que havendo 190 anos que dominamos e povoamos esta terra e havendo nela tantos rios e passos de dificultosa passagem, nunca houvesse indústria para fazer uma ponte”. Ao contrário do que afirmam alguns autores, o arquiteto Pieter Post, irmão mais velho do pintor Frans Post, também esteve no Recife, em 1639, observando de perto o projeto da nova cidade. A informação vem a ser confirmada por José Antônio Gonsalves de Mello que, quando de suas pesquisas em arquivos dos Países Baixos (1957-1958), encontrou no Arquivo Geral do Reino (Algemeen Rijksarchief), em Haia, no Cartório da Companhia das Índias Ocidentais (Companhia Velha), maço n. 54, uma lista de compradores em um leilão de escravos realizado no Recife, datado de 5 de maio de 1639, na qual o “Senhor Pieter Janssen Post [adquire] dois escravos para seu serviço” (Heer Pieter Janssen Post tot sijn dienst).

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