Judith, a irmã que Shakespeare nunca teve (por Beatriz Braga)
Não lembro da primeira vez em que ouvi o nome de Albert Einstein, porque, assim como uma grande lista de homens importantes, ele sempre esteve na minha vida. Recentemente, porém, ouvi pela primeira vez o nome de Mileva Einstein na série Genius, nova produção da Nat Geo. Ele, um aluno desregrado com ideias brilhantes. Ela, a única mulher do curso de matemática da Escola Politécnica de Zurique e uma das mentes mais inteligentes dali. Conheceram-se, engravidaram, casaram-se. Ela largou os estudos para ser mãe. Ele criou a Teoria da Relatividade. Entre os choros de bebê e as noites em claro, Mileva revisava e trabalhava nas ideias do marido. Apesar de muitos estudos históricos (há também os que refutam essa ideia) apontarem sua participação como muito necessária para a Teoria, seu nome apareceu como coautora na primeira versão e depois foi esquecido. “Você não precisa de um homem” diz o pai de Mileva na série. Ele sabia que não havia espaço no mundo para a cientista e a esposa. O que a ciência perdeu quando tiraram da garota sérvia a liberdade para criar e estudar? Infelizmente não sabemos. O caso se repete com Judith, a irmã de Shakespeare, que tinha o mesmo talento do dramaturgo. Enquanto o irmão frequentava a escola e conhecia a literatura, ela estava – desde do berço – aprendendo a ser noiva. Judith não teve tempo e oportunidade. Ao passo que a obra de Shakespeare se imortalizou no planeta, sua irmã morreu no anonimato. Só que Judith nunca existiu, foi criada pela escritora Virginia Woolf em Um teto todo seu, em 1929, um dos mais interessantes ensaios feministas do mundo. Ela queria explicar por que as bibliotecas estavam abarrotadas de escritores homens. Tolstói lutou em guerras, viveu entre os ciganos, amou livremente, sem censura, colhendo uma vasta experiência de vida que lhe serviu como inspiração para suas obras. Por sua vez, Jane Austen escreveu na sala de estar, escondendo seus escritos com um mata-borrão e omitindo sua ocupação de empregados e visitantes. “Ela nunca viajou. Nunca andou de ônibus em Londres ou almoçou sozinha”, diz Woolf. Apesar de toda falta de liberdade, a voz de Austen permanece viva. Mas não podemos negar que se ela tivesse “um teto todo seu” talvez tivesse produzido mais. E é possível imaginar que se Tolstói fosse obrigado a permanecer em casa, cuidando da família, isolado, Guerra e Paz poderia não ter existido. Se Shakespeare fosse mulher, provavelmente Macbeth seria um sonho frustrado em uma cozinha do século 16. A reflexão de Woolf ecoa em um cenário que a política, a culinária, a ciência e a literatura ainda são majoritariamente ocupadas por homens. No mundo em que as mulheres ainda abrem mão de muita liberdade ao se tornarem mães ou simplesmente por serem mulheres. Seja porque as empresas veem nossos úteros como uma ameaça ao lucro; seja porque a sociedade ainda exclui a mãe do seu seio produtivo. A carreira da mulher é abalada pela família, a do homem não. Enquanto não houver total liberdade intelectual para ambos os sexos, não haverá igualdade. Genius repete as cenas históricas às quais estamos acostumados: professores brancos ensinando para homens iguais a eles. As mulheres são quase sempre as irmãs, esposas e filhas. Assim era a regra. A série, no entanto, não se limita à ótica do Einstein que conhecemos e mostra também a versão da Einstein anônima, uma exceção da época. Através do acordo de divórcio do casal, Mileva acabou recebendo o dinheiro do Prêmio Nobel do marido. Uma recompensa de consolação ou uma retratação, quem sabe? O mundo está bem melhor do que foi um dia. Mas ainda há muito o que se fazer e, para isso, histórias como a de Mileva devem ser lembradas. Para Woolf, Judith vive. Ela está em todas as mulheres “esperando uma oportunidade de andar em carne e osso”. *Beatriz Braga é jornalista e empresária (biabbraga@gmail.com). Ela escreve semanalmente a coluna Maria pensa assim para o site da Revista Algomais
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