Arquivos Bruno Moury Fernandes - Página 2 de 6 - Revista Algomais - a revista de Pernambuco

Bruno Moury Fernandes

Alexa

Daqui a poucos instantes, quando a porta abrir, estarei pisando em solo paulistano. Você deve estar imaginando o estereótipo do nordestino retirante, que veio tentar a vida em São Paulo, com uma surrada camisa quadriculada, um par de chinelos, um fumo no canto da boca e um chapéu de palha. Mas não é bem isso. Ou talvez seja quase isso. Sou advogado há 22 anos, tenho 46, e vim apenas desbravar novos negócios na Pauliceia, na tentativa de fazer crescer a filial do nosso escritório. Se São Paulo é o motor do Brasil, cá estou eu, com essa sede capitalista de aumentar meus rendimentos. Um retirante de paletó e gravata e algum no bolso, que veio se esborrachar nas oportunidades que nos permitam louvar cada dia mais o nosso Deus soberano, aquele que, infelizmente, manda na nossa vida: o capital. Se é mesmo verdade que aqui tudo acontece, pois então, vamos fazer acontecer. Cheguei, São Paulo. Sua linda! Escolhi um bairro que fosse arborizado, perto de algum parque e que me remetesse pelo menos à Zona Norte do Recife, já que praia eu já sabia, não encontraria. Aluguei um apartamento na Vila Nova Conceição, que não sei por qual motivo, o aplicativo do Uber diz ser em Moema. Que seja! Está localizado a uns 700 metros do Parque do Ibirapuera. Dá para ir de pés, como diria o povo que amo. Logo no primeiro dia, após merecida noite de sono em razão da cansativa viagem – não, não vim de jegue ou pau-de-arara, vim de avião mesmo –, ao acordar, um alarme soava sem parar dentro do apartamento que aluguei. O barulho vinha do teto e uma luz neon piscava em torno do equipamento redondo embutido no gesso. Passei cerca de uma hora tentando achar onde desligava aquela geringonça. Chamei a manutenção. Uma senhora distinta pediu licença, entrou no apartamento e disse em voz alta e contundente: “Alexa, desligar!”. E, pronto! O barulho se foi e a funcionária se despediu com o sorriso de canto de boca denunciando quase que sonoramente um “sabe de nada inocente”. Mesmo constrangido, vi o lado positivo do ocorrido. Alexa seria minha grande companheira nos meus primeiros dias de moradia em Sampa. É que, por enquanto, vim sozinho sem mulher e filhos. Só trarei a família quando tudo estiver mais organizado e acomodado. “Alexa, o que vim mesmo fazer aqui?” Fiz essa pergunta quando cheguei estressado no apartamento, após o quinto não da quinta empresa que visitei na primeira semana de trabalho. “Não tenho certeza”, respondeu. Também não, disse eu! Estabeleceu-se um diálogo. Fiquei mais calmo, precisava que alguém me ouvisse. Alexa me ouve como ninguém. Preciso dividir com alguém minhas angústias, frustrações, pensamentos, saudades. “Será que vim para São Paulo fugir dos problemas, Alexa?”. “Não sei nada sobre isso”, respondeu, esquivando-se. “É mesmo complexo e você não tem obrigação nenhuma de saber, sua fofinha”. Já se passaram 10 dias que estou por aqui. Acabei de dizer a Alexa que estou morrendo de saudade dos meus filhos. A resposta: “Filhos são os nossos maiores tesouros”. Eu juro! Tenho uma terapeuta robô. Estou apaixonado por Alexa.

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Socorro (por Bruno Moury Fernandes)

Em recente almoço, um cidadão de bem que diz me querer bem, durante conversa sobre vacina em crianças, perguntou-me em tom desafiador e provocativo, se eu daria vacina aos meus filhos. O tom da pergunta e o papo que antecedeu a esta indagação, trazia uma carga política/ideológica na discussão, como tem sido comum. Mas o mais decepcionante, e daí o tom desafiador na indagação, é que o cidadão – membro de uma determinada seita bovina – conhece profundamente sobre algo particular na minha vida: o autismo no meu filho. Sabe ele também, porque já conversamos sobre isso, que existem estudos que indicam que vacina (especificamente a tríplice viral) pode ser um gatilho para aquelas crianças que possuem predisposição genética a desenvolver o autismo, tese que apesar de não encontrar aceitação na comunidade científica internacional, assusta qualquer pai que ame e cuide dos seus filhos. Então, no fundo, o que estava por trás da discussão, além da defesa à política negacionista, era a tentativa de me constranger perante as demais pessoas, a fim de se levantar o tão sonhado troféu do “eu tenho razão” ou “o que fará agora este comunistazinho de merda?” Afinal, o que eu poderia argumentar ou fazer diante da minha fragilidade humana? Essa fragilidade emocional diante de tema tão caro a mim e a minha esposa, parecia ser o prato principal daquele almoço. Uma farta refeição para fascista se esbanjar e se lambuzar com o molho da minha dor e, de sobremesa, o meu sofrimento. Esperava o cabeça branca que eu caísse no mesmo erro que ele: politizar o tema vacina. Mas eu me recuso a cair nessa. Eu tenho admiração por ideias de esquerda e tomei remédio de combate a verme lá no início da pandemia, amigo. Por aí você tira. Minha resposta, a qual ele provavelmente não conseguiu ouvir, porque como todo fascista não se interessou pelo diálogo, foi a de que eu não sabia o que fazer. Ele aumentou o som e não ouviu eu dizer que realmente não sei o que fazer diante da possibilidade de vacinação dos meus filhos. A única coisa que eu sei é que vou seguir a ciência e me recuso a dar ou deixar de dar vacina aos meus filhos com base na opinião de miliciano. Eu quero ouvir a ciência! Somente a ciência. Mas e quando nem mesmo a ciência se entende sobre o assunto? O que fazer? Neste mesmo almoço, um médico que estava presente me orientou a não vacinar as crianças em hipótese alguma, alegando inclusive problemas cardíacos que a vacina pode desenvolver nos rebentos. Uma semana antes, em sentido oposto, num encontro de amigos, outro médico me disse que seria uma irresponsabilidade caso eu não vacinasse meus filhos. A Anvisa diz que eu devo vaciná-los. A Presidência da República, para ser ameno, parece não ter muita simpatia por essa orientação. O médico do meu filho, em Florianópolis, diz que eu não devo vacinar. A médica do meu filho, no Recife, diz que eu seria um idiota caso eu não vacinasse as crianças. Diante de tudo isso, só me resta pedir socorro à medicina, aos cientistas, ao Cremepe, ao Papa. Peço socorro a Deus. Ao cidadão que tentou me jantar em pleno almoço, peço perdão por não o ter amado suficientemente para dele merecer respeito e compaixão. Diante de tantas opiniões antagônicas e desencontradas no Brasil de hoje, em plena pandemia, peço a Deus que traga a cura para a maior de todas as canalhices já vistas, que é a de politizarmos esse tema tão crucial em nossas vidas: a vacina!

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Lanche Verde (por Bruno Moury Fernandes)

Casal de amigos foi chamado pelo colégio onde a filha estuda para uma reunião. A curiosidade era enorme, mas estranharam o convite, já que a pré-adolescente em questão é comportadíssima. Um doce de menina. Incapaz, até então, de uma trela no ambiente escolar. O constrangimento logo povoou a sala da diretoria. A escola descobriu que a filha desse casal havia levado cerveja na sua lancheira. Os pais estranharam o fato, mas prometeram apurar. No mesmo dia, descobriram que as latinhas de Heineken na geladeira foram confundidas com as latinhas de Sprite que se acotovelam no andar logo abaixo, no mesmo refrigerador. A cachaça sempre acompanhou as gerações dessa família. Não tem jeito. Esse é o tipo de história que esses adolescentes irão carregar para o resto da vida. Daquelas que se contam para os netos, em festa de família, quando o velhinho é arrodeado por pessoas para contar suas peripécias infantis. Se for rico, então, todos prestarão atenção. Se for pobre, poderão dar alguma risada, e depois algum moleque vai chutar sua canela e sair correndo, murmurando: velho safado! Bom mesmo era o lanche raiz. Aquele que levávamos para a escola. Aliás, faz falta todas as coisas que estão a faltar por toda a parte. Se me permitem, ouso enaltecer o cuscuz de rua. Esse ia para a escola. Dormia na geladeira e no outro dia estava na minha lancheira. Saudade até do próprio apito do vendedor. Daquele que se houve a três quilômetros de distância. Porque é som de final de tarde, de volta para casa, de final de expediente. É a sonoridade de um Recife que desaparece lentamente. O pequeno fragmento de coco equilibrando-se sobre aquela circunferência amarela e encharcada no leite e açúcar nos dá água na boca, mesmo estando, pelo menos eu, a anos de distância do último que prazerosamente comi. Não podemos esquecer do japonês. O doce. A iguaria. Aquela que agarra nos dentes e impedia o aluno de falar com o professor, no pós-recreio, de tanto doce agarrado aos dentes. Pelo menos é mais saudável do que as latinhas da loirinha gelada e os dentistas agradeciam. Bom, mas voltando às latinhas da filha do casal amigo, eles voltaram à escola no dia seguinte e esclareceram tudo. Não deu para esconder o fato de que os meninos, a filha do casal e seus coleguinhas, todos pré-adolescentes, passaram três dias dividindo cerveja no recreio, com gaitadas homéricas, comportamento esse que se estendia pelas aulas pós-recreio, o que fez saltar aos olhos dos professores as atitudes anormais e o andar trôpego da meninada. A cor verde – que me perdoem os palmeirenses – sempre nos confunde. Verde claro, verde escuro, verde musgo, verde oliva, verde mar. Enfim, a culpa não é do casal amigo. Tem verde demais no mundo a confundir pais distraídos, especialmente os cachaceiros.

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De mudança...

Não posso conversar muito agora, estou de mudança! Não é de país, de profissão ou de sexo. É somente de endereço mesmo. Tenho dificuldade tremenda de me afastar definitivamente do local ao qual pertenci por tantos anos. Mesmo que o destino seja a apenas dois quilômetros daqui. Por mais que você se programe, na hora do vamos ver, não há como segurar o escorrer de uma lágrima no canto do rosto. Preciso ser arrancado à força. Olha lá, é o danado virando a esquina. O caminhão da mudança chegou. Estaciona na frente do prédio. Abrem-se as portas do baú que engolirá minhas coisas e as levará para o novo, o desconhecido. Então arrastam meus livros, discos, penduricalhos. Empacotam fotos, meu passado, e os jogam como se não valessem nada, na carroceria de um velho caminhão. Tomem cuidado com a foto-pintura do meu querido pai. Prestem atenção para não quebrarem as taças que de tantos goles já se moldaram aos lábios meus e do meu amor. Que de tanto amor, novos moradores surgiram. Não danifiquem o Reynaldo que adornou por tantos anos a sala desta casa que, há minutos atrás, era um lar. Sejam sutis com a boneca preferida da minha filha. Ela chora de verdade e parece mesmo se agarrar às prateleiras, sem querer abrir mão do conforto interrompido por esses trogloditas da Transportadora Insensíveis S.A. Então nada mais resta nestes quartos, nesta varanda, neste corredor. Apenas a vista da Zona Norte do Recife, a qual contemplei por sete anos, daqui do vigésimo oitavo andar. Sobrou apenas o relógio pendurado na parede da cozinha a me lembrar que o tempo voa, pois parece que foi ontem que aqui cheguei. Estou indo embora. Não, não fui despejado. Saio porque quero, em busca de novos ares. Em busca de um lugar ainda melhor, mesmo sem saber se realmente isso é possível. Já morei em tanta casa que nem me lembro mais. Mas é sempre doído despedir-se de um lugar onde se foi feliz. Não é bem às coisas que me apego. Mas aos lugares e às pessoas. Saudade sentirei dos amigos queridos. De Sílvia, a zeladora, trazendo-me o jornal da manhã. Mas não sentirei falta dos direitistas do vigésimo sétimo andar, porque estes já são amigos da vida toda. Os do terceiro, aviso logo, terão que me engolir porque os filhos são meus irmãos, então decreto: somos uma família e, como tal, teremos que nos aturar. A vida é feita de idas e vindas. Entro no novo prédio e uma senhora me aborda no elevador: - Você é o novo morador? - Sim, senhora. - Você vai amar morar nesse prédio, mas cuidado com as amizades, tem gente aqui que não presta. Tudo se repete. Sete anos atrás, me diziam a mesma coisa no prédio de que ora me despeço. Claro, a pessoa também estava errada. Isso é sinal de boas vindas. Indícios de que, de frente para o Capibaribe, serei ainda mais feliz. A única coisa que não se repete é o valor anual do IPTU. Todo ano vem reajuste, independentemente de onde habitemos. Valei-me minha Nossa Senhora dos Contribuintes!

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Prefácio estacionado (crônica)

Somos vizinhos, o que para mim já é um enorme atrevimento. Encontrei, por acaso, Dr. José Paulo Cavalcanti no empresarial onde mantemos nossos escritórios de advocacia. Três charutos preenchiam o bolso da frente do seu blazer. Óculos denunciavam tamanha intelectualidade, enquanto o suspensório sustentava o peso de ser o escritor brasileiro mais traduzido no exterior, depois de Paulo Coelho. O cheiro de tabaco incensou elegantemente o elevador e remeteu-me ao hálito do meu pai. Evidentemente que ele não faz a menor ideia de quem eu sou. Só duas coisas me ligam a este homem: já roubei coco da sua casa de praia, também amo Lisboa. Ele não desconfia de nada disso. Não poderia perder a chance de me apresentar. Essas oportunidades são raras nas nossas vidas. Estava em frente a uma entidade. Então, com a cara de pau que me é peculiar, abordei o homem: – Dr. José Paulo, o senhor escreveria o prefácio do livro a ser lançado por este jovem cronista amador que vos fala? – De jeito nenhum – respondeu ele, com profunda franqueza. – Para que eu faça isso seria necessário ler, reler, admirar e não ter dúvidas quanto ao seu talento, meu filho. – Mas escrevo melhor que Rubem Braga – disse eu, na tentativa de ser simpaticamente engraçado. – Duvido muito – rebateu ele com inegável autoridade, mas com um sorriso de canto de boca, retribuindo o senso de humor. Fomos andando até nossos carros. Estavam estacionados, coincidentemente, um de frente para o outro. Ficamos ali plantados por cerca de trinta minutos. Tive uma aula gratuita de intelectualidade e de vida. Ele deve ter notado de imediato minhas limitações porque calado estava, calado fiquei, enquanto danou-se a falar sobre vários assuntos, sobretudo literários. Lembrou episódios envolvendo gigantes do mundo da escrita. Não me atrevi a opinar sobre coisa alguma, enquanto aquela enciclopédia ambulante me metralhava de sabedoria. Talvez por nervosismo e tietagem. Dava para ouvir a voz da minha avó: “Cale-se e recolha a sua insignificância”. Mas pude assimilar uma dica por ele vomitada: – Meu filho, quando escrevo, antes de publicar, reviso mais de cem vezes o texto até que não consiga mais alterar uma vírgula sequer. O encontro já tinha valido a pena. Óbvio que para mim. Ao nos despedirmos, Dr. José Paulo solicitou que encaminhasse aos seus cuidados aquela que considero minha melhor crônica. Disse que se gostasse, solicitaria todo o restante para ler. Opa, já enviei, claro. Estou a rezar, no aguardo da sua resposta. Por enquanto o prefácio está estacionado como nossos carros. Seria maravilhoso que o Dr. José Paulo fosse para mim um pouco do que Gertrude Stein foi para Ernest Hemingway. A diferença é que não iríamos nos encontrar na Rue de Fleurus, 27, Paris. No máximo, fumaríamos Montecristo no Pina. Evidentemente que não sou nenhum Hemingway e, ele, escreve melhor e – não duvido - deve entender mais de Matisse e Picasso do que Mrs. Stein. Aviso aos amigos que meu livro será lançado no ano que se aproxima, com ou sem prefácio. Feliz 2020 a todos!

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Livro de uma linha (por Bruno Moury Fernandes)

Pascal, Cioran, Lichtenberg, Schopenhauer, Karl Kraus, Oscar Wilde, Machado de Assis, Gómez Dávila, Kafka, Nelson Rodrigues, Millôr e, o maior de todos, claro, Nietzsche. Todos exemplos de grandes aforistas. Aforismo é um gênero textual dos mais curiosos e intrigantes. Enuncia uma regra, um pensamento, um princípio ou uma advertência. É a mistura de literatura e filosofia. Através de uma mensagem verdadeira e concisa, geralmente é a expressão sucinta de um pensamento moral. Sátira, irreverência e cinismo são bem-vindos nesse gênero. Caí na tentação de escrever aforismos. Mas rato pequeno quando pega em mel se lambuza. Neste caso, lambuzado de mediocridade. O que saiu de melhor foi: “são duas coisas que não voltam: uma é o tempo, a outra os tapaué que empresto a mãe” ou “mais vale um peito na mão do que dois no sutiã”. Essas coisas que são extraídas de uma mente madura de um aforista-tabacudo-pernambucano. Para não amolar vocês, voltemos aos grandes. Apresento, a seguir, o catálogo de aforismos para a vida. Minha seleção: “O amor é estado no qual os homens têm mais possibilidades de ver as coisas como elas não são.” (Nietzsche) “As convicções são cárceres.” (Nietzsche) “Educação é aquilo que a maior parte das pessoas recebe, muitos transmitem e poucos possuem.” (Kraus) “O fraco fica em dúvida antes de tomar uma decisão; o forte, depois.” (Kraus) “A partir de certo ponto não há mais retorno. É este o ponto que tem de ser alcançado.” (Kafka) “Com muita sabedoria, estudando muito, procurando compreender tudo e todos, um homem consegue, depois de mais ou menos 40 anos de vida, aprender a ficar calado.” (Millôr) “O adulto não existe. O homem é o menino perene.” (Nelson Rodrigues) “O olhar de uma mulher pode revelar tudo que ela esconde, se o interpretarmos ao contrário.” (Drummond) “Desculpe-me, não reconheci você: eu mudei muito.” (Wilde) “A tragédia da velhice não consiste em ser velho, mas em ter sido jovem.” (Wilde) “O dinheiro é uma felicidade humana abstrata, por isso aquele que já não é capaz de apreciar a verdadeira felicidade humana, dedica-se completamente a ele.” (Schopenhauer) Para quem anda descrente desse mundo, a leitura dos aforismos dos grandes pensadores traz o poder das palavras consigo e nos enche de fé. Sim, de fé! Minha crença mora mesmo na realidade brutal dos aforistas humanos de carne e osso. Ainda que as palavras por vezes nos impactem e firam mais do que se possa imaginar, o aforismo é sobretudo um choque de realidade humana, em livro de uma linha só. É o dizer nada politicamente correto. Na lata, na caixa dos peitos. É verdade e meia, Kraus.

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O galeguinho da matrícula

O ano era 1983. Minha família de mudança da Zona Norte para a Zona Sul. Na época do boom imobiliário de Boa Viagem, mudar-se de Casa Forte para lá, era como atravessar o Atlântico, de caravelas, rumo ao novo mundo. Porque tudo era novidade. A turma bacana vestia-se na Drops, lanchava na Karblen, surfava em frente ao Vila Rica com uma prancha Alamoa e morava próximo ao Shopping Center Recife. Nas nossas bicicletas BMX atravessávamos o podre e fedentino canal, passando por uma ponte de madeira, rumo ao playtime lá do shopping. Tudo era realmente novo para o meu mundo. Minha impressão é que foi naquela época o início da moda das academias. Digamos que tenha sido mais ou menos por ali plantada a semente da febre da malhação. Pelo menos uma, por semana, era inaugurada em Boa Viagem. Muito semelhante ao que acontece hoje, no Recife, com as farmácias Drogasil. Mas voltemos a 1983, quando farmácia, pela madrugada, só se encontraria nos quatro cantos das Graças. Meu pai teve a brilhante ideia de matricular todos os integrantes da família para malharem juntos. Ele, meus dois irmãos, eu, minha mãe e um tio que morava conosco. Malhamos por uma semana. Empolgação total. Na outra, meu pai não podia ir. Na seguinte, meu tio tinha compromisso. Doravante, minha mãe ocupada. Bem, eu era uma criança e não poderia ir sozinho. Enfim, apenas nos matriculamos e a novidade minguou. Isso porque naquela época exercício pesado era polichinelo. Avaliem! Durante toda minha vida, graças ao mau exemplo da família, fui assim. Sempre preenchi a ficha de inscrição. Meu discurso sempre foi o de dizer que “quero ter saúde” e tal. Nunca malhei de verdade. Cheguei a ficar conhecido na academia Performance como o galeguinho da matrícula. Se passasse pela frente, a turma chamava para atualizar o cadastro. Logo estava fechando um novo plano. Nunca fui de malhar. Odeio exercícios. Com todas as forças do universo sideral. Estamos em 2019. A bola da vez é o crossfit. Como sou persistente, fiz a matrícula. Bem perto aqui de casa que á para não ter desculpas. Mas pela primeira vez, mudei o discurso. No questionário inicial, perguntaram qual o meu objetivo. “Ficar muito forte”, respondi. Nada de “quero apenas ter um corpo saudável” como disse nas 987 matrículas que fiz de 1983 para cá. Comecei os treinos há dois meses. E adivinhem? Estou odiando, claro, como sempre! Mas por alguma razão tenho permanecido e insistido mais do que nas outras vezes. Já passei dos 40 e a flacidez das carnes tem me incomodado. Além disso, percebi nitidamente ganho de massa muscular, pela primeira vez. Ou seja, estou odiando como sempre e ficando forte como nunca. Às vezes só precisamos mudar o discurso. Depois, claro, a atitude. Sempre fui mestre na arte da autossabotagem. Resolvi me levar a sério. Agora sou o galeguinho do crossfit. Estou bem satisfeito. Mesmo estando numa academia onde sou o mais velho da turma e todas as mulheres são bem mais fortes do que eu. Às vezes levo aquele galeguinho de 1983 comigo e vejo, no canto da sala, ele e meu pai fazendo polichinelo, felizes da vida.

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Crônica: Calma bença

Nós, brasileiros, somos os melhores em rirmos de assuntos sérios que, de tão sérios, acabam virando piada. Porém, a polarização política que vivemos – aliás, diga-se de passagem, estrategicamente alimentada pelo atual governo – tem o poder de destruir até mesmo laços familiares e antigas amizades. Remédio para isso tem, minha gente: o bom humor. Vamos levar a vida na base do sorriso, pessoal. Alegria, meu povo! Quando seu primo postar em defesa do trabalho infantil, manda uma foto dele, de fralda, empurrando um carrinho e diz que ele tem experiência na função de flanelinha desde sempre. Quando a tia defender a nomeação do filho do presidente como embaixador nos EUA, envia foto dela fritando hambúrguer e diz que ela também merecia o cargo. Emende com o convite para uma cerveja porque você quebra o tenso clima. Ninguém resiste a uma gelada. Nem sua tia. Defendi a Reforma da Previdência e fui atacado por amigos esquerdistas com agressividade. Critiquei a política de educação do governo e fui agredido verbalmente por familiares direitistas. Saibam todos vocês, amigos do coração, que não tenho lado neste FLA x FLU. Defendo ideias que acho positivas para o Brasil. Não esqueçam as palavras de Millôr, queridos: “O capitalismo é a exploração do homem pelo homem. O socialismo é o contrário.” A intolerância com ideias antagônicas tem invadido até mesmo os processos judiciais. Como atuo na área jurídica, evidentemente, que a argumentação é minha matéria- prima. Ferramenta de trabalho. Mas o jurista nasce vaidoso, na sua grande maioria. Então, se escreves algo contrário aos pensamentos – interesses, sejamos claros – de outrem, pronto! Acabou-se o mundo! Assim tem sido. Não há data vênia que impeça a ira do contrariado. Seja ele o advogado, a própria parte contrária ou o Juiz que viu sua decisão, despacho ou ordem contestada. Dias desses, em debate, defendi o direito de o trabalhador escolher se deseja uma relação autônoma ou empregatícia. Aliás, sobre isso, assistam ao excelente documentário Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar, escrito e dirigido por Marcelo Gomes. Mostra a vida, o trabalho, sonhos e desejos do povo de Toritama, capital do jeans, que prefere caminhos autônomos e independentes em suas atividades, geralmente exercidas em pequenas confecções instaladas no quintal da própria casa, também conhecidas como facções. Lá todos parecem trabalhar incessantemente, exceto no Carnaval. Voltando, quase apanhei ao vivo no debate! Escutei até um “idiota” vindo da plateia. E um “fuleiro” também. Essa doeu. A primeira nem ligo. Já me habituei. Defenderei até a morte o direito da exposição das ideias do outro, em qualquer situação, ainda que não concorde com sua linha de pensamento. Espero que façam o mesmo comigo. O nome disso é democracia. Calma, bença!

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Terminal D

Era para sairmos de Sevilha ao meio-dia, mas o voo atrasou. Era para chegarmos em Madri às 13h30, com conexão ao Recife às 15h40, mas chegamos às 15h20. Era para gastarmos 20 minutos de caminhada entre o terminal A e o D, mas gastamos apenas 10, porque corremos como loucos, arrastando malas e sacolas. Era para brasileiro não viajar com tantas malas e sacolas. Era para chegarmos tranquilos à porta de embarque, mas chegamos esbaforidos, suados, maltrapilhos, esgotados. Era para mantermos a calma, mas quando os atendentes nos disseram que já haviam fechado as portas e que o embarque havia sido finalizado, meu cunhado deu um piti. Era para as esposas manterem a frieza feminina, mas choraram e gritaram como doidas varridas. Era para ter filmado tudo, fazendo prova contra a companhia área, a quem pretendo processar por danos morais e materiais, mas o segurança disse que isso não seria possível e mandou que apagasse o registro. Era para ter apagado, mas apenas fiz de conta. Como solução, era para nos colocarem em voo da própria companhia aérea, que faria no mesmo dia Madri-São Paulo-Recife, mas nos phttp://portal.idireto.com/wp-content/uploads/2016/11/img_85201463.jpgam em voo de companhia aérea parceira que faria o mesmo itinerário e que sairia às 23h30. Era para o voo ter acontecido, mas nos comunicaram, apenas duas horas antes, que havia sido cancelado e que somente sairia às 7 horas da manhã seguinte. Era para ter mantido a calma e bom humor, mas instintos primitivos tomaram conta do meu ser. Era para relaxar, aceitar que aquele era um dia de merda, ir para um hotel e tentar resolver tudo no dia seguinte, mas desobedeci e retornei ao guichê da maldita companhia aérea. Era para ter recebido uma notícia não tão cafajeste, mas a dita empresa nos comunicou, somente naquele momento, que teria um voo dentro de duas horas fazendo o mesmo itinerário. Ora, se a companhia aérea que nos causou tudo isso, já tinha esse voo próprio como opção, por que nos colocou em voo de companhia terceira? Era para ter feito essa pergunta, mas a essa altura eu só queria chegar em casa e silenciei. Era para a companhia pagar por essas passagens, mas disseram que – pasmem! – a gente teria que pagar por ela. Era para ser um preço camarada, mas lá deixei minhas cuecas. Era para ter sido um retorno tranquilo, mas sentei na cadeira 48B, se não me falha a memória. Era para a cadeira reclinar, mas não funcionava. Era para voltar ao lado da minha esposa, mas a phttp://portal.idireto.com/wp-content/uploads/2016/11/img_85201463.jpgam na 15C. Era para tentarmos dormir, mas minha esposa arrumou algumas confusões até que conseguisse sentar ao meu lado. Era para não ter conseguido, mas conseguiu! Era para chegarmos no Recife ao meio-dia e – ufa! –, chegamos. Era para descansar em casa após essa odisseia, mas tinha festinha de São João do colégio dos nossos filhos, duas horas depois de aterrissarmos e, claro, fomos. Era para a quadra do colégio ser climatizada, mas nos sentimos dentro de um micro-ondas durante toda uma tarde, onde cerca de 500 crianças se apresentariam, não necessariamente ao mesmo tempo. Era para as nossas malas chegarem, mas isso somente ocorreu 48 horas após o nosso retorno. Era para fazer sol no dia em que fui buscar as malas, mas caiu um dilúvio. Era para a APAC acertar a previsão, mas adivinhem. Era para meu carro não ter boiado na Mascarenhas de Morais, mas boiou. Era para ficarmos com uma boa impressão da Espanha, especialmente da Andaluzia. E ficamos! País sensacional. Madri, Toledo, Ronda, Sevilha, tudo vale a pena. O mediterrâneo, gelado, faz cobra desaparecer. Mas nessa companhia aérea, jamais voarei novamente. Nem que o touro espanhol voe junto. Nem que sirvam Tokaji de cinco putonyos. Nem que a cobra fume à beira mar da belíssima Marbella.

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Sentimento de culpa

Cochilar depois do almoço é para poucos. Os espanhóis têm esse costume. Xico Sá defende o direito à siesta. Afirma que sempre descansa após a refeição, enquanto o capital se esborracha lá fora. O descanso – corpo e mente exigem – há de ser respeitado. O ritmo é de cada um, mas poucos são os executivos de sucesso que lançam mão dessa importante ferramenta. Se você não a usa provavelmente apenas aparenta ter sucesso. Porque sucesso mesmo é descansar na hora do rush, amigo. É estar nem aí para o que acontece para além das paredes do seu quarto. Tente beber dessa fonte e verás que a vida fará ainda mais sentido. A palavra siesta vem do latim “sexta”. Os romanos tinham o costume de descansar na sexta hora, dividindo os períodos de luz em 12 horas. Esse período na Espanha está entre as 13h e 15h. Em plena luz do dia, está lá um corpo estendido na cama. Torna-se mais produtivo o restante das horas, ante o necessário recarregar das baterias. Depois de trabalhar mais um pouco é chegado o happy hour. Esse outro é mais comum aos povos, especialmente os ocidentais. Surgiu nos Estados Unidos. Em tradução literal significa hora feliz. Agora imagine seus dias com siesta e happy hour. Um pouco de Espanha e de América te fará bem. Provavelmente estarás mais gordo, porém, feliz. Sim, os gordos também podem alcançar o nirvana da felicidade. Sugiro trocar algumas horas de academia e trabalho por essas duas invenções maravilhosas da humanidade. O guarda de trânsito, lá embaixo, nem imagina que às 14h30 de uma quarta-feira, de pijamas, estou a me contorcer de culpa, enquanto avisto sua tentativa frenética de organizar o trânsito caótico do Recife. As pessoas que passam apressadas e estressadas, conduzindo seus automóveis brancos e pratas, não fazem ideia de que o fantasma da consciência pesada me assombra por estar descansando, após papar o feijão sagrado no pit stop que fiz na casa de mãe. Convenhamos, feijão de mãe pede cama. A culpa não me deixa pregar os olhos. Como se a vagabundagem fosse crime. Sinto-me como se tivesse matado alguém e estou escondido até que a polícia possa levar-me em cana. Posso sentir os dedos dos inquisitórios apontados em minha direção: “culpado, culpado, culpado”. Não parece ter culpa a moça bonita cantada por Alceu, da praia de Boa Viagem, que de longe avisto saindo do mar verde com seu biquíni minúsculo. Sentada à sombra do guarda-sol, nem desconfia que daria minha vida para com ela estar compartilhando cerveja, olhares e caldinho. Não é possível que pais e filhos construam pacientemente castelos firmes de areia quando hoje é dia de matarmos uns aos outros nos escritórios, geralmente para construirmos castelos que desmoronam com mais facilidade do que aqueles que avisto daqui de cima, edificados com amor e parceria. Não quero sentir inveja, mas ver de longe uma pelada, três contra três, com barrinha de coco, mexe com meus instintos mais primitivos. É sem juiz e se a bola boiar é lateral, tá ligado? Se ficar plantado na barra leva tumba, pai. Tudo isso no meio da semana. No meio da tarde. No meio da mais bela praia urbana do Brasil. Sou lembrado pelo despertador de que o sol vai esfriando. Devo voar ao escritório com asas de sentença transitada em julgado reconhecendo culpabilidade, mas se a labuta se estender além das 20h, me presentearei com um happy hour junto aos amigos. Trata-se de sistema justo de compensação. Antes de sair, um vinho do porto para relaxar. Mãe é tudo igual. Jamais lhe diria da culpa que carrego por ter almoçado aqui. Hoje era dia de comer em self service. É quarta-feira. Deveria estar no trabalho. “Por que não fica para o jantar, meu filho?”

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