Olhar poderoso sobre cotidiano e as coisas da vida

Por Ney Anderson

No verso do cartão do pedágio estão fotos de pessoas desaparecidas. Em outro momento, os horrores presentes em uma exposição e a pureza do coração selvagem nas pinturas inclassificáveis de Clarice Lispector. Há também as espetaculosas exposições sem obras, ditas imersivas, com o uso da tecnologia audiovisual. Ainda a estátua da famosa poeta com as mãos arrancadas, vandalizada não apenas através da figura inanimada, mas na memória depredada e desrespeitada.  

O filho que chega com hora marcada para ir embora. Uma mãe que tudo sabe. As coisas que nos deixam sem palavras e, consequentemente, a importância do silêncio. Sombras que são esconderijos. Cães chorosos nas férias dos donos ao serem enviados para hotéis pet e as consequências dos desastres ambientais, misturadas com histórias de crianças que perdem a infância e a sebedoria dos mais velhos. As coisas não ditas de uma senhora leitora na intimidade deixada nos rabiscos dos seus livros da pequena biblioteca particular. Tudo isso e mais um pouco faz parte das histórias presentes no livro de crônicas “Turno da Madrugada”, da autora Mariana Ianelli, publicado pela editora Ardotempo.

Na antologia composta por 130 crônicas, publicadas entre 2010 e 2022 em livros, jornais e sites, a autora cria mundos a partir de imagens que lhes surgem constantemente. Como as pessoas que desapareceram por vontade própria, em busca de novas histórias. A cronista reflete sobre os lugares distantes, e seus respectivos nomes diferentes, que apenas chegam para pessoas ao redor do mundo por conta das suas íntimas tragédias.  

Como boa cronista atenta, Mariana observa os mínimos detalhes e retira daí o extrato fino para os seus textos. Mesmo nas mais tristes das histórias, como as dos condenados à morte em algum país, há um trato refinado. A cronista joga o leitor para dentro da cena, sendo impossível não sair marcado de alguma maneira. Mariana tenta descrever, por exemplo, o que é o silêncio, o verdadeiro silêncio. E descobre ser o lugar onde se habita.

O poeta Rilke, retratado por ela, um sedutor celestial. A poesia como espelho para ver o mundo, além dos livros. E pessoas anônimas de feitos interessantes, reveladas em lápides cheias de nomes e histórias no cemitério. Alguns textos do “Turno da madrugada”, por vezes, se assemelham aos contos, por conta da estrutura quase ficcional, recheada por detalhes. A observação de Matilde, a fiel funcionária da avó, com as suas vidas secretas.

A morte dessa mesma avó em um outubro azul, dia de Nossa Senhora Aparecida, está presente na obra. Crônicas sobre filmes diversos, o impacto que uma triste fotorreportagem causa no mundo, alçando o seu autor ao céu dos prêmios e ao inferno do remorso.

Vários textos são nada mesmo do que incríveis.  Sobre crônica sobre as muitas vidas dos livros e a estranha e perfeita combinação dos exemplares dispostos em uma biblioteca. Onde Saramago e Lobo Antunes podem viver pacificamente, lado a lado, nas prateleiras. Da mesma forma que Garcia Márquez e Vargas Llosa. Entre tantos outros exemplos, tendo os gatos, seres quase mágicos, a caminhar sob todos eles.

A partir de cenas aparamente simples, como o menino que deixa escapar o seu balão, a autora entra por mundo novos. Crônicas sobre a finitude e o que fazer da vida, com os finados nunca findando de verdade, permanecendo presos à terra.  Ianelli desfila textos sobre temas atuais, como o jovem escritor que prega em seu recente livro as vinte razões para parar de ler. Aliás, muitos são os poetas e santos que rondam “Turno da madrugada”, relevando a suas intimidades em cartas e mais cartas, com lições e ensinamentos. Dor de ternura das pequenas grandes coisas da vida. Amigos de um só dia, provérbios de tempos passados que chegaram aos dias de hoje, alguma tentativa de explicação para coisas absurdas e a viva respiração de um êxtase são costurados por Mariana com linhas invisíveis.

O acontecido e o imaginado misturados ao olhar poético da autora, a epopeia de uma concordância, que vai passando, passando, sem ninguém perceber. São textos que conversam com o leitor e chamam para dançar perguntando como está a paz de quem os lê. A memória de um livro esquecido na estante. O falso cotidiano da madrugada em vidas sonâmbulas e o que vibra dentro de cada um. Os cantos de pássaros noturnos, o ato sexual à luz do dia, que na visão da cronista ganha ares de poesia e de ficção. Mariana Ianelli se pergunta em determinado momento: o que se pode salvar de um mundo em chamas?

A forma premonitória que os escritores escrevem é pensado pela autora. A misteriosa telepatia e a eterna sucessão de eternidade. Enquanto olha pela janela a cronista imagina e vislumbra os temas. Ela evoca tempo, dias, anos. São pequenas memórias de uma cidade, da vida. O olhar do homem que sonha o sonho do pintor da obra. Crônicas que falam sobre a suposta paz de espírito, a relação conturbada entre pais e filhos escritores clássicos. Muitos são os autores lembrados nas crônicas de Mariana.

Se percebe um trato diferente com a palavra, no modo da autora juntar as sentenças, numa mistura orgânica de sentimentos e sensações. A liberdade de escrever sobre qualquer coisa. É justamente isso que ela busca nas realidades que a rodeiam. A margem do mistério, a sutileza e o arrepio, todas fontes de uma mesma existência. A autora é essa artista que vê serventia onde os outros só veem descarte.

A cronista ressalta: a crônica pode estar doente de realidade. No entanto, é essa mesma realidade a matéria-prima do seu trabalho a sutileza presente na beleza entranhada no mistério de um rosto, o olhar frio e duro para a pandemia que tanta gente matou, transformando em reflexão de como se extingue um dia.

Neste livro, Mariana Ianelli escreve a partir do trivial, mas que nas mãos dela se transformam em outra coisa. A autora provoca com esses textos o prazer de ler, seja em qual turno for. Mas, sobretudo, naquele estado de mansidão, de contemplação, que somente as madrugadas proporcionam.  “Turno da madrugada” é um livro composto por imagens fortes, com uma certa musicalidade quase sensorial, preenchido por esses mistérios todos das madrugadas insones, onde memória e observação se embaralham no estado hipnagógico, entre o sono e a vigília

Nesses diversos textos fica no ar uma dúvida, como todos os bons livros devem deixar. Para isso, no entanto, a autora evoca Mario Quintana e a pergunta atribuída ao famoso escritor: o que será que Deus quis dizer com este mundo?

Impossível não refletir sobre o que é a crônica. Talvez, como a autora mesma diz, é a oficina da vida escrevendo-se em tempo real.

Ney Anderson é jornalista, escritor e crítico literário

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