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Gilberto Freyre

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Fernando Freyre e as memórias de seu avô, Gilberto Freyre

Neto do sociólogo e atual presidente da Fundação Gilberto Freyre relembra a convivência familiar e a descoberta de seu legado intelectual. Na semana dos 125 anos do Mestre de Apipucos, conheça um pouco dessa história de afeto com o vovô Concon. Na foto, o atual presidente da fundação está no colo da avó Magdalena Freyre A relação entre avô e neto costuma ser marcada por gestos de carinho, aprendizados e convivência familiar. Assim foi a experiência de Fernando Freyre Filho com Gilberto Freyre, um dos mais importantes pensadores brasileiros. Ele tinha 9 anos quando o Mestre de Apipucos faleceu, mas guarda boas memórias do convívio familiar. Gilberto Freyre, o primeiro brasileiro a receber o título de "Sir" da Rainha Elizabeth II da Inglaterra,  era conhecido por Fernando e pelos demais netos o "Concon", apelido carinhoso em família. A convivência acontecia principalmente com encontros semanais nos almoços de sábado na casa do avô. Nessas ocasiões, a casa se dividia entre a esfera familiar e os compromissos profissionais de Gilberto. “Nós entrávamos na biblioteca e, em poucos minutos, já havíamos bagunçado tudo”, relembra Fernando, destacando a paciência e o carinho do avô, que interrompia suas anotações e chamava os netos para a sala de estar. Mas os almoços nem sempre eram apenas encontros familiares descontraídos. Muitas vezes, a presença de personalidades políticas, pesquisadores internacionais e autoridades fazia com que as reuniões ganhassem um tom mais solene. “Acordávamos e já sabíamos que teríamos que vestir paletó e gravata, porque o almoço era especial”, conta Fernando, relembrando como a rotina entrelaçava o doméstico e o público quando o sociólogo recebia visitantes. Fernando relembra algumas premiações e entrevistas da vida pública de seu avô, mas a consciência sobre sua importância como intelectual reconhecido surgiu gradualmente. “A ficha caiu no dia da morte dele”, diz, ao recordar o impacto do velório no Recife e a presença de figuras ilustres naquele momento de despedida. Para entender melhor o legado do avô, ele decidiu ler suas obras, o que lhe permitiu perceber a complexidade e a genialidade por trás do mito que conhecia nas brincadeiras e almoços solenes. Com o passar dos anos, Fernando Freyre não apenas preservou as lembranças do avô, mas também aprofundou sua compreensão sobre o impacto de sua obra. O convívio afetuoso da infância deu lugar a uma admiração consciente pelo intelectual que redefiniu a maneira como o Brasil enxerga sua própria identidade. Entre a intimidade e o legado, ele carrega a herança de Gilberto Freyre não apenas como neto, mas como alguém que reconhece a importância de manter viva a memória e o pensamento do Mestre de Apipucos.

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Fundação Gilberto Freyre celebra 125 anos do sociólogo com evento especial e premiação

Programação gratuita inclui café da manhã, feira de livros, atividades culturais e entrega do Prêmio Gilberto Freyre 2024-2025 A Fundação Gilberto Freyre abrirá suas portas excepcionalmente neste sábado, 15 de março, para comemorar os 125 anos do nascimento de Gilberto Freyre. O evento reunirá visitantes em uma programação diversificada, que inclui visitação à Casa-Museu Magdalena e Gilberto Freyre, feira de livros, atividades culturais e a cerimônia de entrega do Prêmio Gilberto Freyre 2024-2025. A celebração começa às 9h com um café da manhã aberto ao público. A partir das 9h30, a Feirinha de Livros oferecerá edições da Fundação Gilberto Freyre, Cepe Editora e Vacatussa. No mesmo horário, crianças poderão participar da Oficina de Desenho Livre, ministrada pelo arte-educador Emerson Pontes. Já os amantes do desenho de observação poderão se reunir no Encontro do Urban Sketchers Recife-Olinda, coletivo internacional que promove encontros ao ar livre. A Casa-Museu Magdalena e Gilberto Freyre estará aberta para visitação mediada em três horários (9h30, 10h30 e 11h30). A residência, onde o sociólogo viveu por mais de 40 anos, preserva um rico acervo de mobílias, objetos e obras de arte. “Celebrar os 125 anos de Gilberto Freyre é valorizar a história e o vanguardismo de um dos maiores intérpretes do Brasil”, destaca Fernando Freyre, presidente da Fundação Gilberto Freyre. O ponto alto do evento será a entrega do Prêmio Gilberto Freyre 2024-2025, às 11h. A vencedora do 3º Concurso Internacional de Ensaios, Isabella Mendes Freitas, será homenageada por sua obra Linhas e Curvas, Cinzas e Cores: Estrangeiros e Estrangeirismo na Obra de Gilberto Freyre, que será publicada pela Global Editora. “Temos orgulho de contribuir com o Prêmio Gilberto Freyre há tantos anos, uma iniciativa fundamental para incentivar pesquisas que aprofundam a compreensão da nossa identidade e modernização como sociedade”, afirma Richard Alves, diretor-geral da editora. Além da programação especial deste sábado, a Fundação Gilberto Freyre promoverá ao longo de 2025 diversas ações em homenagem ao sociólogo, incluindo o lançamento do site da Casa-Museu, seminários e publicações inéditas, como a adaptação da obra Nordeste para histórias em quadrinhos. Serviço 📅 Data: Sábado, 15 de março📍 Local: Fundação Gilberto Freyre (Rua Dois Irmãos, 320, Apipucos)🎟️ Entrada gratuita 🔹 Programação: 🚗 Estacionamento gratuito no Marista, com serviço de manobrista a partir das 10h30

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Mary Del priore

Mary Del Priore analisa a relevância de Gilberto Freyre no mundo contemporâneo

Os 125 anos de Gilberto Freyre: como suas ideias sobre identidade, cultura e mestiçagem permanecem atuais No ano em que se comemoram os 125 anos de nascimento de Gilberto Freyre, seu legado segue vivo e provoca debates sobre identidade, cultura e sociedade. Autor de obras fundamentais para a compreensão do Brasil, Freyre antecipou questões que hoje ganham ainda mais relevância, como a mestiçagem, a interdisciplinaridade na produção acadêmica e a fluidez das relações raciais e sociais no país. Para discutir a atualidade de suas ideias e os desafios de sua interpretação no presente, conversamos com a historiadora Mary Del Priore, especialista na história da vida privada e da cultura no Brasil. Na entrevista, Del Priore destaca a visão inovadora de Freyre, que rompeu com paradigmas acadêmicos de sua época ao unir história, antropologia e literatura na análise da sociedade brasileira. Além disso, comenta como o sociólogo antecipou fenômenos globais, como a diversidade resultante das migrações e os desafios da identidade nacional em um mundo cada vez mais interconectado. Quais os temas que Gilberto Freyre escreveu e discutiu na sua época que a Sra considera mais vanguardistas e permanecem atuais?  Autor da obra fundamental sobre a cultura brasileira, GF antecipou um tema de grande relevância atual: a mestiçagem, agora visível em todo o mundo. A globalização, o capitalismo e as migrações Sul-Norte transformaram os países que, no século XVI, colonizaram o Oriente e as Américas. Embora hoje tentem fechar fronteiras e erguer muros, é tarde demais: as novas gerações de imigrantes estão mestiçando a Europa e a América do Norte. Essa diversidade é evidente nos esportes, na mídia, nas Forças Armadas, nas artes, na política e nas Academias. Há “morenos”, café-créme, mixed-blood, mestizos, misticci, mischling. Eles consomem alimentos estrangeiros, dançam ritmos variados, vestem-se e se penteiam inspirados pelo Outro, adotam costumes e crenças antes desconhecidos por seus avós. Essa miscigenação, pioneiramente descrita por GF, é hoje chamada de globalização. No entanto, os wokistas veem a mestiçagem como “estupro”, ignorando deliberadamente os estudos de milhares de historiadores que, como mostrou GF, confirmam a importância da mestiçagem, evidente desde 1872, quando o primeiro censo do Império registrou mais pardos (mestiços) do que brancos. As mestiçagens biológicas e culturais são fatos históricos indiscutíveis e continuam a moldar o mundo, não podendo ser ignoradas. Acerca da forma dos seus textos e dos espaços que ele ocupou no debate público, a Sra observa que houve inovação também por parte de Gilberto Freyre? Imenso estilista da palavra, introdutor de poesia e humor em seus textos, GF é autor de um livro irresistível não apenas pela riqueza de informações e documentos, mas também pela beleza de sua escrita. Já em 1933, ele antecipou abordagens que só se tornaram populares a partir dos anos 1980: a antropologia histórica e a história da vida privada. Ao aproximar a antropologia social e cultural da história, da literatura e das artes, inaugurou uma nova categoria de saber. GF foi um pioneiro da interdisciplinaridade entre nós, privilegiando estudos sobre temas como família, casamento, culinária, moradia, sexualidade, crenças, entre outros. Contudo, a atual formação monodisciplinar de muitos cientistas sociais não permite apreciar seu pioneirismo em focar a intimidade e o cotidiano como espaços de contradições e permanências na vida de um povo. Em pleno 2025, a Sra destacaria alguma ou algumas reflexões propostas por Gilberto Freyre que não são ainda bem conhecidas ou discutidas pela sociedade? Que aspectos da obra dele merecem uma maior atenção na sociedade contemporânea? Gilberto Freyre destacou temas que merecem atenção, entre eles o despotismo e o mandonismo ainda presentes. No entanto, considero fundamentais seus estudos sobre o pardo e o mestiço, que desconstroem a falácia de que o Brasil é negro e branco, como nos EUA. De acordo com o último Censo do IBGE de 2022, os pardos representam 45,3% da população. Gilberto Freyre pioneiramente narrou a história da mobilidade social deste povo “junto e misturado”. A consolidação do modelo binário que separa “brancos” e “negros” ocorreu nos anos 1990, quando pesquisadores do IPEA, adotaram essa categorização. Em vez de utilizarem a nomenclatura "não brancos", eles optaram por agrupar pretos e pardos sob o termo "negros", em consonância com as demandas do Movimento Negro. O resultado foi o aumento do número de “negros” no censo de 2000. A decisão foi absurda, pois o Brasil nunca foi uma nação birracial como os Estados Unidos, onde uma gota de sangue negro define a identidade racial da pessoa. O convívio fluido e sem barreiras descrito por Gilberto Freyre foi substituído por uma cultura de ódio e desconfiança, alimentada por interpretações apressadas e radicais de movimentos contemporâneos.

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125 anos de Gilberto Freyre: o olhar pioneiro do Mestre de Apipucos

O sociólogo pernambucano antecipou debates da atualidade sobre temas como ecologia, globalização, o valor cultural da gastronomia e a urbanização *Por Rafael Dantas Autor de mais de 80 publicações que explicam o Brasil e o Nordeste, Gilberto Freyre completaria neste mês 125 anos. O Mestre de Apipucos teve uma trajetória intelectual marcada por antecipações de debates que em nossos dias seguem na agenda pública do País. As discussões ecológicas, os desafios do desenvolvimento urbano, a questão racial, entre tantas outras, estiveram em seus livros e artigos. Análises que mobilizam pesquisadores de vários lugares do mundo e que seguem contribuindo para o pensamento crítico no Brasil, mesmo muitas décadas após sua escrita. O mais famoso livro de Freyre, Casa Grande & Senzala, foi escrito quando ele era ainda um jovem pesquisador com pouco mais de 30 anos. Ele deixou outros clássicos que confundem os admiradores da sua obra sobre o mais apreciado, como Nordeste, Açúcar e Sobrados e Mucambos. Até a sua terceira idade, o sociólogo publicou vorazmente. Além dos livros, seu pensamento estava impresso em jornais, com destaque para o Diario de Pernambuco, onde escreveu por décadas. Fernando Freyre Filho, presidente da Fundação Gilberto Freyre, revela que, além das publicações que o avô fez em vida, ele deixou ainda quase uma dezena a ser publicada após a sua morte. Além disso, a fundação tem lançado coletâneas e versões em quadrinhos dos seus clássicos. Porém, mais que volumosa, a obra de Gilberto Freyre tratava de temáticas que explodiriam no debate público anos e até décadas depois. A pauta ecológica, que está diariamente nos jornais brasileiros e mundiais, era assunto dos artigos e publicações do sociólogo, mesmo na primeira fase da sua longa vida de escritor. Contrapondo-se a uma visão de precariedade e diminuição da região, que ainda está em desconstrução no País, em Nordeste (1937), Gilberto Freyre não nega os desafios da seca mas reivindica o reconhecimento dos valores naturais locais e reafirma o papel econômico do setor sucroalcooleiro para o País. Mais que isso, aponta um olhar muito peculiar da posição regional como berço da história nacional. “Porque através daqueles dias mais difíceis de nação da civilização portuguesa nos trópicos, a terra que primeiro prendeu os luso-brasileiros, em luta com outros conquistadores, foi essa de barro avermelhado ou escuro. Foi a base física, não simplesmente de uma economia ou de uma civilização regional, mas de uma nacionalidade inteira”. Além do olhar para o valor do solo massapê, o sociólogo discute questões ambientais e, especialmente, de trabalho do homem que movia a economia da época. Ele não alivia as críticas às péssimas condições de trabalho, de moradia e de alimentação. Chega a afirmar em Nordeste que as condições da jornada laboral de sua época representavam “talvez um trabalho mais penoso do que no tempo da escravidão. Porque os senhores de terras de cana e os armazenários de açúcar dispõem hoje de menor número de trabalhadores para o esforço agrícola” Quase 100 anos depois, é difícil não fazer pontes entre esses debates, circunscritos aos trabalhadores braçais da época, com discussões contemporâneas relacionadas à qualidade de vida profissional, redução de jornadas, burnout, entre outras pautas econômicas e laborais. Mencionando vários pesquisadores da época, Freyre descreve teorias que afirmam que o menor desenvolvimento físico e até produtivo do homem na época tinha relação com aspectos como má saúde pública, má alimentação, má dormida, entre outros. Ao mencionar trabalhos de médicos brasileiros do Século 19, o sociólogo chega a relacionar os problemas de saúde da população com a destruição das matas e a falta de cuidado na conservação dos animais. A diretora executiva da Fundação Gilberto Freyre, Jamille Barbosa, destaca que o Mestre de Apipucos teve uma contribuição relevante sobre a ecologia, especialmente nas relações do homem com a natureza. “Ele tratou de uma ecologia mais humana. Não é aquele conceito de meio ambiente sacralizado, idealizado. Ele queria realmente estudar esse meio ambiente que é afetado pelo homem e esse homem que é afetado pelo meio ambiente. De que forma esse meio ambiente condicionou a forma do ser humano de estar, de se alimentar, de conviver. Isso é muito presente na obra de Gilberto. Bem como da forma que esse homem vai afetando negativamente esse meio ambiente”, afirmou Jamille. Mais do que escrever e refletir sobre o convívio harmônico com a natureza, ele vivenciou isso no seu sítio em Apipucos, que abriga a Casa-Museu Magdalena e Gilberto Freyre. Toda a área verde no entorno da residência é vista pela pesquisadora como uma forma do sociólogo colocar em prática o que ele defendia nos livros e artigos. Em um momento que o mundo se volta para a adaptação às mudanças climáticas e discute o impacto do ser humano no meio ambiente, muitas reflexões e preocupações do pensador pernambucano permanecem atuais. Pesquisador da obra de Freyre, Anco Márcio Tenório Vieira, professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE, aponta dois pioneirismos da obra do pensador pernambucano. “O primeiro, é um tema que perpassa toda a obra de Freyre e que foi relevada ao seu tempo, mas que hoje, na nossa contemporaneidade, é a principal pauta destas primeiras décadas do Século 21: a ecologia e a economia autossustentável. Freyre foi um crítico contumaz do modelo de progresso que orientou e vinha orientando o mundo ocidental e ocidentalizado e um defensor incansável da economia autossustentável, de soluções ecológicas no campo urbanístico, da arquitetura e da construção civil, da moda, da produção de alimentos, da industrialização”. O segundo pioneirismo destacado pelo docente da UFPE diz respeito ao conceito de regionalismo. “Freyre vai pensar o Brasil a partir das regiões, das suas especificidades sociais, econômicas, culturais, religiosas, ecológicas etc. Freyre vai assentar o seu conceito de regionalismos em cima da tríada Tradição, Região, Modernidade; Tradição, Região, Modernismo; ou Tradição, Região, Modernização”. Anco Márcio explica que, para Freyre, a tradição era o conjunto de experiências sociais, estéticas e culturais originadas das influências lusas, ibéricas, africanas e ameríndias. Essas influências se miscigenaram e se transformaram ao longo do tempo, dando origem

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90 anos do clássico Casa-Grande & Senzala: uma obra ainda atual

Ao completar 90 anos, Casa-Grande e Senzala permanece essencial para compreender o Brasil *Por Rafael Dantas A obra prima de Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala, completou 90 anos. Inovador na escrita, na metodologia e no conteúdo, o autor e seu primeiro livro seguem alvos de debates dos mais acalorados no País. Criticado e elogiado, o clássico analisou a formação da sociedade brasileira, destacando a influência da miscigenação cultural num período em que se fortalecia o racismo no mundo. O lançamento de Casa-Grande & Senzala coincide com o ano de chegada ao poder do nazismo. “É o momento em que Hitler ascende ao governo na Alemanha com a proposta de criar uma raça especial, branca, ariana. Aqui no Brasil surge Gilberto Freyre com Casa-Grande & Senzala ressaltando a importância da presença dos afrodescendentes no Brasil, indicando que aquela visão que se tinha do que poderia ser um país com um futuro nefasto ou imprevisto, seria exatamente o contrário. Essa seria a riqueza que o Brasil poderia trazer no contexto da humanidade. Na contramão do pensamento ariano, que passava a predominar na Europa”, analisou o pesquisador Túlio Velho Barreto, na abertura do 1º Seminário do Pensamento Social Brasileiro, promovido pela Fundaj (Fundação Joaquim Nabuco). O evento mobilizou pesquisadores de todo o País para discutir Por que (ainda) ler Casa-Grande & Senzala 90 anos depois? Como um clássico, o livro que dissertou sobre as interações entre senhores e escravizados, explorando as complexidades do sistema escravocrata e sua influência na identidade nacional, ajudou a explicar o Brasil do início do século passado e hoje contribui para entender os legados deixados por essa formação baseada nas relações familiares patriarcais e na economia da monocultura agrícola. “A história de contato das raças chamadas superiores com as consideradas inferiores é sempre a mesma. Extermínio ou degradação”, escreveu Freyre, há 90 anos. Embora o autor tenha denunciado a violência da colonização, ele é apontado pelos críticos como alguém que também suavizou a percepção das tensões do sistema escravista que imperou no País por séculos e deixou suas marcas até os dias de hoje na sociedade brasileira. O sociólogo Jessé Souza, conferencista do seminário promovido pela Fundaj, explicou que o racismo era explícito e predominante mesmo entre os intelectuais no início do século passado. Quando Freyre nasceu, por sinal, havia passado apenas 12 anos da assinatura Lei Áurea, que marcou oficialmente o fim da escravidão no Brasil. O pensador considera que o mestre de Apipucos é um ponto de ruptura desse pensamento no País. “Quem foi que possibilitou transformar esse racismo explícito? Todos os intelectuais, até os anos 1930, eram racistas. Sem exceção. Aí chega Gilberto Freyre, em 1933, e mostra essa relação, em que a cultura negra passa a ser vista como um dos suportes fundamentais da sociedade brasileira”. INEDITISMOS DE GILBERTO FREYRE “Freyre é mais progressista do que todos os intérpretes, fora o Florestan Fernandes, que vão existir depois dele”, analisa Jessé Souza, que nomeou Gilberto Freyre como o “pai espiritual do Brasil” pela sua contribuição à compreensão fundadora do País. “Freyre criou a imagem que cada um de nós tem na cabeça, inconscientemente, pré-reflexivamente, quando se fala sobre o Brasil. O que me chamou atenção foi a centralidade do tema da escravidão. Ele é o único que põe a escravidão explanando o fundamento da sociedade brasileira”. Para celebrar o marco dos 90 anos da obra, que segue revelando o Brasil, o professor de sociologia Cauby Dantas, da UFPB (Universidade Federal da Paraíba), coordenou os trabalhos do Núcleo de Estudos Freyreanos para discutir a importância do livro. “O primeiro elemento de contribuição de Casa-Grande & Senzala é a própria operacionalização do conceito de cultura, que ele aprendeu estudando com Franz Boas (antropólogo alemão, considerado o pai da antropologia americana).Além disso, a obra traz muitas outras inovações, como a própria narrativa, com uma linguagem solta, antiacadêmica, em tom ensaístico, e isso é novo”, explica. Assim como Jessé Souza, Cauby ressalta o ineditismo de Freyre ao fazer um movimento inverso ao pensamento majoritário da época sobre a relação entre as raças. “O elogio e a valorização que ele faz da miscigenação também são inéditos", completou. A percepção de Freyre sobre as contribuições dos negros na formação do Brasil, segundo Jessé Souza, provoca uma inibição da visão racista explícita no País, que usará de outros caminhos para se perpetuar nas décadas seguintes. “Quando se proíbe ou se interdita o racismo no espaço público, esse racismo continua. Vai ser usado sob outras mil máscaras”. A continuidade da escravidão e do seu legado é um dos aspectos do Brasil atual que merece ser observado nessa incursão na obra de Freyre. “De que modo a escravidão continua até hoje?”, questiona Jessé Souza. Apesar de não existir pelourinho em praça pública, nem os trabalhadores andarem algemados, ele observa a continuidade dessa relação em vários aspectos do trabalho no País. “As pessoas imaginam que escravidão é aquilo que houve nas fazendas do Rio Grande do Sul. Mas isso é uma cegueira enorme. A escravidão está aí, em todo lugar. Precisamos vê-la. Quando se cria uma classe de pessoas condenadas ao trabalho muscular, você está criando escravos. Como é que o fundamento escravocrata continua até hoje sem mudança? Uma sociedade, assim como um indivíduo, só muda com autocrítica. Se você não se autocriticar, vai continuar com outras máscaras”, completou o sociólogo. Jessé Souza explica que Casa-Grande & Senzala é a obra que explica a gênese da sociedade brasileira, ao relevar não apenas a escravidão, mas ao trazer um aspecto de gênero também. Ele conta que Freyre ressalta a quantidade de mulheres que vêm ao País escravizadas. “Ele vai dizer depois, em Sobrados e Mucambos, que o grande problema do Brasil, mais que o racial, é o de gênero”, destaca. Um passado violento contra as mulheres que continua em vários aspectos disseminado na sociedade brasileira. A variedade de fontes e de temáticas tratados por Freyre, como a vida privada, o cotidiano e o sexo são outros paradigmas quebrados pelo sociólogo. O pesquisador da UFPB conta que

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Um bolo para homenagear o Recife

Gilberto Freyre: “Pode-se falar de um paladar brasileiro histórico e é possível também tropical ou ecologicamente condicionados e como tal ao que parece predisposto a estimar o doce e até o abuso do doce (...) um doce o de preferência brasileira, como que barroco e até rococó (...) é a arte mais sensual da sobremesa.” Pode-se dizer que Pernambuco tem uma forte relação com a criação de bolos. Bolos que trazem memórias ancestrais ibéricas, e bolos que são reinventados para formarem novas memórias. O bolo sempre acompanhou a história de Pernambuco, pois recebe nomes de lugares, de engenhos de açúcar, de famílias; marcam datas históricas; e revelam assinaturas, de doceiras e doceiros, de famílias ilustres à época da criação da recita do bolo. Assim, os bolos marcam a vida de uma sociedade marcada pelos contextos dominantes da cana-de-açúcar enquanto verdadeiras marcas heráldicas. Os bolos são quase brasões feitos de trigo, mandioca, ovos, leite, açúcar, diga-se muito açúcar; frutas frescas e/ou secas; e especiarias do Oriente. O bolo no Nordeste é principalmente uma invenção para expressar os sabores e as estéticas dos trópicos. Bolos para exibirem o glacê “mármore”, feito à base de açúcar e cítricos. Bolos para serem apreciados no dia a dia. Bolos para as celebrações dos santos de junho, com receitas com muito milho e canela. Destaque para Gilberto Freyre que em 2020 celebrou 120 anos de nascimento, e assim, do seu livro “Açúcar” (1939), trago alguns dos muitos nomes de bolos que marcam um sentimento nativo pernambucano. Bolos nomeados como pessoas: bolo Cavalcanti, bolo de milho D. Sinhá, bolo padre João, bolo D. Luzia, bolo Souza Leão, bolo Souza Leão - Pontual, bolo D. Pedro II, bolo de mandioca à moda Dr. Gerôncio. Bolos nomeados como lugares: bolo Guararapes, bolo de bacia Pernambuco, bolo paraibano, bolo de rolo pernambucano, bolo brasileiro, bolo Souza Leão à moda da Noruega.Há outros bolos com nomes diversos como: bolo Divino, bolo de São Bartolomeu, bolo engorda-marido, bolo de São João, bolo Republicano, bolo treze de maio. Trago um estudo de caso que vai além do livro “Açúcar”. É o bolo Recife, um bolo-homenagem à capital pernambucana. Tradicionalmente mantém a forma circular, que é características dos bolos caseiros e das padarias. Ainda, pode ser apresentado no formato retangular ou de “caixa”, e com recheio de doce de ameixa. É um bolo para o cotidiano, para acompanhar o café ou chá, ou mesmo acompanhar um generoso pedaço de queijo. Sem dúvida, o bolo acompanha a vida pernambucana.  

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95 anos do Manifesto Regionalista de Gilberto Freyre

“Há quem se suponha mais devotado que os demais às tradições da região, mas que seja incapaz de descer à cozinha para provar o ponto do doce de goiaba.”   Os contextos socioculturais e políticos dos anos 1920 levam a um ambiente de mudanças e de descobertas num mundo pós 1ª Grande Guerra Mundial. Surgem novas leituras sobre território, região, nação, povo e, em especial, sobre patrimônio cultural. Assim, passam a ser valorizadas as memórias ancestrais, que são fundadoras e autenticadoras de identidades, e de referências para as comunidades e para as pessoas. Estes cenários sociais sensibilizaram Gilberto Freyre para organizar um “Manifesto” profundamente telúrico, contemporâneo, que se propõe em olhar e valorizar os patrimônios culturais nos seus testemunhos de pedra e cal, como as igrejas barrocas, e os engenhos de açúcar; e nos seus testemunhos vivos como as festas dos maracatus africanos, que são também tão barrocos quanto as talhas das douradas. Ainda, a arte popular representativa dos usos e das simbolizações do homem regional; das receitas de bolo, de tapioca, seca ou ensopada ao leite de coco; entre muitas outras comidas, onde todo esse conjunto irá formar as identidades e as singularidades do território. Para Gilberto, ser regional também é ser atual, moderno, porque manifesta histórias e significados da diversidade local. Este entendimento toca nos contextos internacionais, e isto possibilita que haja um diálogo com as culturas do mundo; especialmente, com os movimentos estéticos do surrealismo do dadaísmo, do fauvismo, que buscam nas artes étnicas da África e da Ásia, as descobertas do outro, numa ampliação do sentimento de diversidade. “Foram os Regionalista Tradicionalistas do Recife a seu modo modernos e até modernistas. Tanto que a eles se deve, não só a revelação, no Brasil, e a adaptação, à língua portuguesa, do Imagismo, como a defesa de uma pintura de uma escultura e de uma arquitetura que fossem de vanguarda nas formas substancialmente, regionais, (...).” Sem dúvida, vigora uma determinação patrimonial de preservar a memória na experiência do bem patrimonial, porém não é apenas a preservação para apreciação. E isto é expressivo em Gilberto, que fortalece a interação da pessoa com a comida e as bebidas e, em destaque, a água do coco verde. Ainda nos anos 1920, há avanços conceituais de Gilberto no seu Manifesto Regionalista, que mostra um outro entendimento à época sobre os patrimônios culturais e a sua fruição nos museus, que eram mais integrados à vida regional, sem hierarquizar acervos e testemunhos sociais. “(...) querer museus com panelas de barro, facas de ponta, cachimbos de matutos, sandálias de sertanejos, miniaturas de almanjarras, figuras de cerâmica, bonecas de pano, carros-de-boi, e não apenas relíquias de heróis de guerra e mártires de revoluções gloriosas(...)”. O mesmo deveria ocorrer nos restaurantes, nos bares, nos mercados do Recife, com a permanência de cardápios reveladores dos hábitos alimentares da região, e que são formas de preservar as memórias dos sabores dentro de uma construção plural da cultura. Precisamos valorizar o bolo de massa-puba, a cocada, o doce de caju em calda, o “nêgo-bom”; as frutas da terra que são celebradas na forma de sucos, sorvetes. São os nossos sabores do território e da região. No seu Manifesto Regionalista, Gilberto Freyre mostra as tradições populares como sendo as mais reveladoras e construtoras da singularidade de uma região, pela experiência no cotidiano, na festa, na religiosidade, nos ofícios; e, mais uma vez, tudo isso junto traduz as experiências patrimoniais. “De modo que, no Nordeste quem se aproxima do povo desce a raízes e a fontes de vida, de cultura e das artes regionais. Quem se chega ao povo está entre mestres e se torna aprendiz”. E assim, Gilberto afirma no seu Manifesto o que é ser regional, patrimonial, socialmente valorativo, humano e tradicional. E, no seu mais profundo entendimento, tradição é o mesmo que transmissão. Nota: Todas as citações são do Manifesto Regionalista de Gilberto Freyre.  

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A água tropical

Cada vez mais os produtos naturais são valorizado, numa filosofia de vida que traz a natureza como um tema dominante e de reafirmação de humanidade. Destaque do que vem de uma fruta exótica e que já se tornou tão brasileira que é ococos nucífera, o nosso tão estimado “coco verde” ou simplesmente coco. Da ampla família das palmeiras, tudo se aproveita, é verdadeiramente uma árvore de total utilidade, e por isso nas regiões de sua procedência, Oriente, especialmente países tropicais como a Índia, o coqueiro é considerado como a “árvore do paraíso”. Os coqueirais, sem dúvida, no nosso extenso litoral, fazem as mais fantásticas paisagens, e assim o coco é uma fruta dominante na estética praieira, e principalmente na gastronomia compõe extensos cardápios das tão celebradas “comidas de coco”. Nada melhor do que a água de um coco aberto na hora pelo vendedor à beira mar. Com o uso do facão, quase liturgicamente, executa desenhos feitos no ar realizado em gestos vigorosos e delicados, um quase balé, quando finalmente se chega a polpa da fruta, e finalmente a água. É o néctar que traz o gosto mais gostoso do Trópico.. Ainda, para complementar o banquete, com o uso de um pedaço da casca do coco é retirada a “laminha”, que é a parte mais tenra e macia da fruta. _ Uma delícia!. No Manifesto Regionalista, anos 1920, Gilberto Freyre, que, coerente a sua obra, destaca a importância patrimonial e simbólica da comida. Ele entende que a comida é antes de tudo identidade e referência de povo e país. “Ao chegar ao Recife, guloso de cor local, um dos meus primeiros espantos foi justamente numa confeitaria 'chic', o mate. Como não era 'chic' pedir água-de-coco ou caldo de cana.(...)” (FREYRE, Gilberto. Um café para o Recife. Diário de Pernambuco, Recife, 1920). A produção industrial da água de coco é oferecida diferentes tipos de embalagens. Contudo, a melhor embalagem é a da natureza, quando o próprio coco garante a qualidade, a conservação, e o sabor da água. A água do coco in natura é um alimento rico em: potássio, sódio, cálcio; ferro, fósforo, zinco; cobre manganês, selênio; e vitaminas C, B6, B12, riboflavina; entre outras. É consenso que beber água de coco é beber saúde. Além de ser saborosa, está integrada ao imaginário dos cenários tropicais, quando ganha a sua plenitude simbólica. E, nós humanos, como sabemos, comemos com todos os sentidos. Da mesma forma como se faz com os vinhos, com as cachaças; com as águas minerais, cada vez mais valorizadas pelos seus sabores; e com tantas outras bebidas, é preciso perceber as variações no gosto de cada água de coco. Pois, em cada coco haverá uma água diferente. E, assim, nesse contato direto com a natureza é oferecido, ao paladar, as diferentes oportunidades de sabor. Somente assim a água do paraíso será intensa.

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Mugunzá e manuê. O Manifesto Regionalista pela boca.

Publicado no Recife, em 1926, o “Manifesto Regionalista” foi coordenado por Gilberto Freyre, sendo, à época, um avanço no âmbito das questões patrimoniais e dos temas referentes às identidades e ao conceito do que é regional e nacional. Certamente conceitos ideológicos que são construídos por diferentes processos de bases culturais e sociais. No caso de Gilberto, essas bases também se ampliam à causa ecológica. E assim, um sentimento contemporâneo traz o que é regional, o que é Nordeste em cenários diversos, também numa pluralidade que mostra quantos e quais são os muitos “Nordestes”. Gilberto, no “Manifesto”, confirma sua tendência em buscar nos sistemas alimentares as mais importantes referências para entender um complexo que está integrado ao meio ambiente e as matrizes étnicas e, desta maneira, olhar e buscar traduzir o “homem situado no Trópico”. É sempre muito lírico o português que foi dando aos seus doces e quitutes no Brasil nomes tão delicados como o de alguns poemas: (...) Pudim de iaiá, arrufos de Sinhá, bolo de noiva, (...), nomes macios como os próprios doces”. (Gilberto Freyre) Os muitos acervos que sãos interpretados através das receitas confirmam a presença fundamental de uma “Civilização do Açúcar” na região. Assim, em Gilberto e no seu “Manifesto”, vê-se o homem lusitano que nos revela nas comidas uma colonização euro-africana a partir do Magrebe. “Enquanto isto foi mantendo a tradição vinda de Portugal de muito quitute mourisco ou africano: o alfenim, a alféloa, o cuscuz (...)”. (Gilberto Freyre) A comida, os ingredientes e a alimentação orientam Gilberto neste “Manifesto”, que é profundamente patrimonialista, e que busca um sentimento brasileiro a partir do que come e como come. “Ao lado dos brasileirismos: as cocadas – talvez adaptação de doce indiano, as castanhas de caju confeitadas, as rapaduras, os doces secos de caju, o bolo de goma, o mugunzá, a pamonha, (...), a tapioca seca e molhada, (...), farinha de castanha em cartucho, o manuê.” (Gilberto Freyre) Tudo está muito relacionado ao açúcar como um elemento que exibe a ‘cara’ da região, e que mostra estilos e afirmações de um Nordeste único, peculiar, nacionalmente brasileiro, e distinguido nos sabores e nos paladares. “(...) doce da goiaba (...) experimentar o tempero de um aferventado de peru, (...) ao mercado (...) comer um sarapatel (...) saborear uma peixada à moda da casa com pirão e pimenta (...)”. (Gilberto Freyre) Gilberto sempre busca um lugar estético para a comida, e isto mostra o sentido da arte nos objetos que integram um entendimento de que a comida também é uma realização visual que merece ser apreciada. As mulheres de ganho, das comidas de rua: bolos, acaçás, angus, carurus, acarajés. Mulheres que fazem dos seus ofícios verdadeiras instalações para mostrar a estética de cada comida e para promover o seu consumo. “Mestras na arte da decoração são as negras de tabuleiro que enfeitam seus doces com papel recortado”. (Gilberto Freyre) No “Manifesto”, as celebrações, o teatro, o artesanato, a religiosidade, as sociabilidades nas festas e, sem dúvida, as comidas, são tradições que vivificam as memórias e as identidades. “São João colorido pelo amarelo das canjicas salpicadas de canela (...) ou no Carnaval adoçado pelos filhós com mel de engenho”. (Gilberto Freyre) Com certeza, estes temas são fundamentais quando se olha para uma região. Ainda, para Gilberto, quando se experimenta as tradições de uma região, experimenta-se a sua história. “Quando aos domingos saio de manhã pelo Recife – pelo velho Recife (...). E em São José, na Torre, em Casa Amarela, no Poço, sinto ver ainda de dentro de muita casa o cheiro do mugunzá e das igrejas o cheiro de incenso, vou almoçar tranquilo o meu cozido ou o peixe de coco com pirão. Mais cheio de confiança no futuro do Brasil do que depois de ter ouvido o Hino Nacional”. (Gilberto Freyre). E assim, Gilberto revela o seu Nordeste no sabor e na profunda tradução emocional.  

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Para adoçar

"O Nordeste do Brasil, pelo prestígio quatro vezes secular da sua sub-região açucareira (...) Não só do açúcar: também a área por excelência do bolo aristocrático, do doce fino, da sobremesa fidalga (...) do bolo de rua , do doce e do bolo de tabuleiro, da rapadura (...) de saborear com farinha, juntando a sobremesa a alimento de substância .” (Gilberto Freyre, Nordeste) Da cana sacarina uma civilização marcada pelo que é doce. Açúcar mascavo, mais escuro, com a cor do caldo, do tacho que prepara a massa que é rapadura. Essa cor que traz o verde do caldo é referência visual e tradicional da nossa rapadura, que dá um doce à boca, faz o paladar lembrar que somos, também, herdeiros e filhos de um amplo processo social e econômico da saga dos engenhos que transformaram a Mata Atlântica em imensos oceanos de canaviais. As rapaduras chegam, na sua maioria, dos engenhos domésticos e familiares. O caminho de se fazer o açúcar é longo, exige além do bom caldo os conhecimentos adquiridos durante gerações, nas experiências de purgar, purificar o caldo no fogo profundo, que os mestres de rapadura sabem de olhar, no cheiro, na prova freqüente para conquistar a qualidade ideal, como uma assinatura, uma marca autoral. Assim, os engenhos, em especial os do Nordeste, continuam os seus rituais de moagem, de fabricarem os tijolos de rapadura, que ficam durante algum tempo nas formas de madeira para conquistarem a textura e qualidades necessárias, adquirindo o verdadeiro buquê tão marcante quanto o do vinho, do conhaque, ou mesmo da nossa tão querida cachaça, também filha dos engenhos. Em contextos de reconhecimento em âmbito e de valorização gastronômica, cada vez mais os processos artesanais e autorais dos engenhos, mesmo aqueles que combinam processos industriais, querem investir numa produção especial para o consumo de um público que valoriza o que é feito-à-mão, que busca o autoral, o saber artesanal que é a ação direta do saber tradicional sobre uma técnica, e por isso pode-se chamar, então, de tecnologia tradicional. Nada melhor do a prova da rapadura, daquela que saiu do tacho de cobre, ainda mole e quente, um verdadeiro manjar. A rapadura é de um doce tão saboroso e que se apresenta em inúmeras variações, é quando se vê, então, as marcas dos engenhos, marcas que se repetem à fogo no queijo-de-manteiga, no gado bovino, verdadeiras logos que identificam o lugar, o mestre, o próprio engenho. Assinaturas que fazem ‘terroir”. Assim, nas feiras e mercados, nas lojas, os consumidores vão escolher a rapadura como se escolhe o vinho. Ora pela procedência, cor, datação; ora pela prova, odor. O consumidor reconhece a marca, vê a cor, prova, realiza, então, o encontro com a memória do paladar, reconhecimento do paladar, e assim encontra o gosto desejado, ativa suas emoções diante do que é doce. A rapadura, também, é misturada com a farinha de mandioca _ jacuba. Acompanha o café com o tareco. É ingrediente indispensável no tão conhecido bolo pé-de-moleque pernambucano , entre tantos outros usos culinários.        

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