Por Manu Siqueira Quebrei o tornozelo. Após três segundos de dor lancinante, pensei imediatamente: não vou conseguir brincar o Carnaval. A minha previsão, infelizmente, se concretizou. A fratura e o rompimento de um ligamento me colocaram com uma bota ortopédica imobilizadora por cruéis cinco semanas, no mínimo. É! Não vou brincar o Carnaval. Esses dias precisei ir a uma loja, mancando e munida do meu mais novo companheiro: o estabilizador de tornozelo, que é menos incômodo que a bota. Ao fundo, um frevo me fez lembrar do meu pai. Comecei a chorar no meio do estabelecimento. Uma jovem, ao me ver mancar, disse: tá doendo, moça? Quer ajuda? Eu respondi: sim. Tá doendo demais meu coração por não poder brincar meu Carnaval este ano. Demos uma boa gargalhada. Mas nem sempre fui essa foliã que chora de emoção ao escutar um frevo. Eu fui uma criança que não gostava de Carnaval. Toda foto das matinês nos clubes que eu ia, apareço apática e com a cara desanimada. Só gostava mesmo da guerra de confetes. Acho que despertei oficialmente para essa ofegante epidemia lá para os meus 12 ou 13 anos. Por essa idade, eu comecei a fazer dança popular, no Balé Popular do Recife, e a minha professora, Aninha, colocava os frevos, que eu ouvia quase todo dia em casa, para a gente se alongar na aula. Então, aos poucos, fui me apaixonando pela dança e pela música, aprendendo a sua história e origem, entendendo a diferença entre o frevo de bloco, de rua e o frevo-canção. Sou filha de pai e mãe carnavalescos. Meu pai ouvia frevo o ano inteiro. Lembro com riqueza de detalhes das capas dos LP’s de Capiba, Claudionor Germano, Levino e Nelson Ferreira... e tantos outros, que tocavam na radiola que ficava na sala de casa. Morei na mesma rua que Capiba morou, no Espinheiro. Lembro de, ainda criança, a caminho da escola, vê-lo, cotidianamente, no portão da sua casa. Eu tenho uma relação inexplicável com o Carnaval. Talvez por ter nascido em um. Talvez por não resistir ao glitter. Talvez por me permitir ousar, debochar e ironizar através das fantasias. Talvez seja meramente por considerar a festa mais democrática do planeta. Para mim, o Carnaval horizontaliza pessoas, nem que seja por um breve momento. Já entoei “Madeira do Rosarinho” com um senhor que catava latinhas e tinha um brilho alegre e cantante em seu sorriso que nunca vou esquecer. Carnaval é, para mim, uma profusão de amor. Sem gênero, sem sexo, sem preconceito. É abraçar desconhecidos e é fazer dos desconhecidos, amigos. É tomar uma bebida quente, sem saber sua origem, e brindar com uma pessoa que você estava paquerando e que acabou de conhecer. É tomar banho de chuva ou de mangueira sem se preocupar com a maquiagem derretida ou com o cabelo desgrenhado. Eu só acredito nesse Carnaval: o real, com cheiro de gente, calor e banho de mangueira, multidão, alegria esfuziante e exaustão na volta para casa. Eu sempre me emociono ao ouvir os primeiros acordes de um frevo rasgado. E também me arrepio em toda saída de bloco, ao ouvir os fogos e a orquestra em seguida. Quem consegue não se arrepiar com isso, meu Deus? Acredito que, de alguma maneira, o Carnaval é muito mais que um período de descanso ou de folia. O Carnaval é um sentimento que deixa a gente em um estado letárgico. Tem um cheiro característico. A comida tem um sabor diferente. Os ouvidos estão sempre atentos e a postos para aquela música que arrepia e aquece a alma. Como em um coral, numa energia só, todos cantando juntos. É lindo demais! Os olhos brilham tanto quanto purpurina. De encanto, de magia e de esplendor. Sim, quebrei o pé, mas descobri que o Carnaval é muito além de quatro dias de folia e brincadeira. O Carnaval é um estado de espírito que devemos deixar vivo dentro da gente o ano inteiro. Brincar, pular e escolher brilhar, todo dia do ano. Essa é a verdadeira essência, pura e pueril, do Carnaval. Mas há de se lembrar que a injustiça dói e que sempre seremos madeira de lei que cupim não rói. *Manu Siqueira é jornalista (mmsiqueira77@yahoo.com.br)