Arquivos Raul Lody - Página 2 de 6 - Revista Algomais - a revista de Pernambuco

Raul Lody

Além do garfo (por Raul Lody)

Certas comidas pela proximidade de textura, temperatura e cheiro só podem ser comidas de mão. Não importa se comemos na rua, na pressa do balcão de um botequim, ou na calma quase budista em casa, seja na mesa, na cozinha, em frente ao fogão; ou ainda, num território público, na feira ou no mercado. O que verdadeiramente importa é que a ação imediata se dá no caminho da comida à boca, direto, sem talheres, para atender um desejo físico, sensorial, quase sexual. Na infância que não comeu “capitão”, feito com bolo de feijão e farinha de mandioca, e ainda, um pouco de carne-seca desfiado ou mesmo uma rápida lembrança do toucinho, tudo amassado com a mão e alguns, ainda, eram culminados com uma batata frita, banquete que traz saliva à boca só de pensar. Feito a mão e levado ao paladar com a mão, lambendo os dedos com as partes que não poderiam ser desperdiçadas, é receita que nasce da mistura e da oportunidade de reciclar, após um ou dois dias a feijoada de feijão preto. Doce, quase todos, se a calda for grossa, perfumadas de cravo e canela, se a fruta der consistência deverá ser levada ao paladar sem colher ou qualquer outro instrumento que possa ser intercambiado de uma relação verdadeiramente carnal. Quando se come com as mãos, há dois sentimentos que são dominantes: a pressa ou a calma reflexiva na identificação de cada ingrediente, cor, estética, sensações táteis, um verdadeiro exercício filosófico. A mão é o talher primeiro, uso dos dedos, habilidades para preparar, servir e comer. Fazer a comida com a preparação do tato é uma experiência fundamental para o bom resultado gastronômico, fala-se de prazer de gosto selecionado e intencional, embora muitas das receitas clássicas tenham surgido nas trocas, nos encontros de ingredientes ocasionalmente associados ao trabalho sempre inovador e de adaptações que é o de cozinhar. Da mão de quem faz para a mão de quem acolhe, e elabora no jeito próprio e especial de se relacionar com aquela comida, ou no que é esperado culturalmente na ação de traduzir o que é de comer. Comer abará na folha é um costume tradicional, pois a folha de bananeira previamente passada no fogo, adquire uma textura e odor próprio, embalando a massa de feijão fradinho misturada com camarão seco defumado, sal, pimenta e azeite de dendê, que dá cor a comida e densidade à folha que também apoia na preservação do calor da comida. Pois, abará é comida quente, recém-saído da panela que cozinhou. Então, comer de mão essa iguaria afrodescendente, ritual que se repete com o acarajé, o acaçá, a cocada, o bolinho de estudante, popularmente punheta, todos do tabuleiro da baiana, da tão celebrada Baiana de Acarajé, desde 2001, Patrimônio Nacional Brasileiro. Justíssimo!Associada a todas as formas e intenções de manipulação, nasce à questão higiene. Tema de total interesse necessário à saúde, necessário às regras de controle social do alimento. Louvável! Contudo muitas fronteiras conceituais entre as muitas maneiras de preparar, servir e consumir comida pelo caminho/processo da mão ferramenta que é um símbolo e atestado cultural necessita ser olhada, relativizada, interpretada em diferentes contextos, onde os processos culinários são tão importantes quanto o resultado comida. O uso ancestral da mão nas escolhas e transformações dos ingredientes, além de cumprir etapas técnicas é um conjunto de rituais que atingem diferentes significados, sentidos e sentimentos. Ações tecnicista/cientificas cujo parâmetro muitas vezes é o exclusivamente voltado a regra, aos princípios da higiene total merecem uma intermediação cultural, buscando integrar rigores da saúde com os rigores das identidades culturais. Há uma impressão digital intransferível, personalizada na manipulação, no oferecimento e no consumo da comida. São os ingredientes que chegam da intima relação produto e corpo, pele, emoção, energia, sentimentos, transmitindo no toque humano, fundamental, autoral, doador dos mais íntimos e personalizados gostos.

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O inhame da Costa

Ingredientes, receitas, e comidas em âmbito cultural, social e litúrgico, identificam as matrizes africanas, trazem memórias ancestrais, sabedoria e identidades de povos e de civilizações. Destaque para as tradições do golfo do Benin, também conhecido como Costa, “costa dos escravos”, “costa da malagueta”, “costa dos grãos”, “costa do ouro”. Nela estão os Iorubá/Nagô, co-formadores dos patrimônios culturais do Nordeste, em especial, de Pernambuco. O inhame, raiz tuberosa, da família das Aráceas, está integrado ao imaginário da criação do mundo para o povo Iorubá, e às tradições religiosas dos Iorubá/Nagô no Brasil. .A designação inhame, ainda hoje, é dada às diversas espécies dos géneros Dioscorea, Colocasia, Alocasia e Xanthosoma. O inhame, ou “inhame branco”, é chamado em Pernambuco de “inhame da Costa” e “cará-inhame São Tomé”, o que preserva a sua identidade de procedência africana, no que se pode entender por “terroir”. O inhame é base para diferentes cardápios, consagradamente de matriz africana, e de consumo litúrgico nas comunidades de terreiro. Ao mesmo tempo, o inhame é uma base alimentar do cotidiano, juntamente com a macaxeira, a farinha de mandioca, o jerimum; entre os demais ingredientes que dão identidade à mesa regional. Por representar a fertilidade, o inhame integra vários pratos dedicados a diferentes orixás. O orixá Ogum, também agricultor e caçador, gosta do inhame assado e coberto com azeite de dendê; ou ainda o inhame cru. As bolas feitas com a massa do inhame apenas cozido na água, e insosso, é um complemento para receitas de caças, peixes e legumes. Essas bolas também podem ser condimentadas com pimentas, dendê, e outros temperos. O amalá é um pirão feito de farinha de inhame, segundo as receitas tradicionais iorubá; que também pode ser feito com o inhame cozido e amassado, e complementado com um guisado de quiabos, azeite de dendê, carne, pimenta e outros temperos. Esse guisado, em Pernambuco, chama-se begueri, comida ritual do orixá Xangô. Outro prato do cardápio litúrgico é o “peté” ou “ipeté” é feito com o inhame cozido, acrescido de camarões, cebola e azeite de dendê, sendo comida ritual do orixá Oxum.Inhame cozido na água e sal, feijões cozidos no azeite de dendê, milho branco cozido, pedaços de coco seco, carne temperada de aves, formam uma comida ritual dos orixás gêmeos – ibejis. _ Isso me traz a lembrança de um cântico especial para oferecimento dessa comida:“Epo mbe, ewà mbe, isu mbe”(tem azeite de dendê, tem feijão, tem inhame)Muitos outros pratos são criados a partir do inhame para a cozinha ritual e para a cozinha do cotidiano nas casas, nas feiras, nos mercados, nos restaurantes. O inhame é rico em ferro, cálcio, fósforo, vitaminas do complexo B.O maior produtor de inhame no mundo é a Nigéria, país da África Ocidental, onde se encontram os Iorubá/Nagô.Contudo, o inhame abrasileirou-se e integra as nossas receitas, compõe o nosso paladar. É uma escolha cultural, uma forma de marcar identidade à mesa. RAUL LODY.

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Comida: um espetáculo para as redes sociais

Sim, antes de comer os nutrientes, come-se os símbolos, lugares e histórias. São verdadeiros rituais de autofagia das próprias referências sociais, certamente escolhidas e processadas pelas civilizações, pelas culturas durante a formação dos paladares. Cada ingrediente, cor, textura, processo culinário, quantidade e estética do prato têm significados próprios, e passam a ser referências para legitimar pessoas e sociedades.Na comida tudo é plural, complexo, diverso e funcional. Nela sempre há importância histórica, econômica, política, religiosa, moral e cultural, porque além de alimentar a barriga também alimenta a identidade e o pertencimento. É a celebração plena do onívoro que se representa nas suas escolhas e simbolizações. E isto é fundamental para a relação do homem com o que ele come, quando come, com quem come, e se come com os outros homens ou com os deuses. Estas são algumas das muitas questões, entre tantas, que fazem da comida e da comensalidade um momento complexo do ritual da alimentação. Tudo isso se amplia com a crescente glamourização da comida, e da circulação rápida das informações, e tudo que é referente a este universo é fantástico e emocional, e nos faz ficar comovidos diante do alimento. A economia quer, cada vez mais, neste mercado de abrangência global, ordenar as regras, as modas e as escolhas do que se come com a busca pelos restaurantes “estrelados” ou na padronização extrema das grandes redes e fast food, quando come-se a mesma comida em diferentes lugares do mundo. As redes sociais fazem ferver este campo aberto que é o da comunicação pela comida. Isto é sensacional, pois mostra as arenas do grande circo midiático que vivemos no cotidiano com a espetacularização da gastronomia. Também há um crescente número de atores sociais que buscam notoriedade, fama, mercado de trabalho, e exposição midiática por meio da comida. Hoje, com certeza, a glamourização da comida afirma –se cada vez mais no universo da comunicação, e que vai muito além da boca; porque a comida traz antes de tudo um lugar privilegiado dentro das relações de poder e fama. Nas hierarquias dos “chefes” de cozinha que em alguns casos são considerados quase divindades, porque certamente oferecem ao consumo suas assinaturas e suas exclusividades em espaços verdadeiramente mitológicos. Com certeza, nestes contextos destacam-se talentos, estilos e sem dúvida interesses comerciais. . O mercado da gastronomia é voraz, e, tem fome de fama, de sabores, de memórias, de lugares, de territórios, e de pessoas. Os indivíduos são expostos ao crescente valor simbólico e midiático de onde comer, comer a comida de quem, e que tipo de comida deve comer, para se distinguir dos outros. As ondas fusion, confort food e fast food são maneiras contemporâneas de fazer e comercializar comida e, com certeza, a globalização impõe rótulos preferencialmente em inglês para informar ou afirmar glamourização. No caso do fast food, pode-se entender este processo de vender comida preferencialmente na rua, que sempre esteve integrado ao hábito do brasileiro, que geralmente come o tacacá, o acarajé, a tapioca, a pipoca, ou outro alimento de consumo fácil na rua. E não podemos esquecer da conhecida Kombi do cachorro quente que foi repaginada na nova onda do food truck.Bem, estes mercados tão diversos e dinâmicos mostram uma crescente glamourização da comida, dos chefes, dos restaurantes entre muitos outros lugares e intérpretes que se expõem muito além do alimento. Muitas vezes nem é comer a comida. É postar a comida nas redes socias, um tipo de alimentação do ego cibernético. *Raul Lody é antropólogo

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Carurus e angus - A Bahia de Gilberto Freyre

Na sua obra, Gilberto Freyre olha a comida enquanto um método de interpretação da cultura, e da sociedade nos cenários do Nordeste e do Brasil. Gilberto entende a comida como uma maneira expressiva de comunicação e sabedoria tradicional. Assim, ele mostra na sua obra as matrizes africanas como tema recorrente para um vasto patrimônio cultural do brasileiro. A Bahia, em Gilberto Freyre, é sempre um encontro com o continente africano, que é admirado e revelado com destaque, e emoção, nas usas pesquisas, o que mostra um valor por ele cultivado, e que está permanentemente presente nas suas leituras sobre o brasileiro. “Vários são os alimentos predominantemente africanos em usos no Brasil. No Norte especialmente na Bahia, em Pernambuco, no Maranhão, Manuel Querino anotou os da Bahia, Nina Rodrigues os do Maranhão, o mesmo com Pernambuco. Desses três centros de alimentação afro-brasileira é a Bahia o mais importante. A doçaria de rua aí desenvolveu-se como em nenhuma cidade brasileira, estabelecendo-se verdadeira guerra-civil entre o bolo de tabuleiro e do doce feito em casa (...). (...) quitutes feitos em casa e vendidos na rua em cabeça de negras mas no proveito da senhoras: mocotós, vatapás, mingaus, pamonhas, canjicas, acaçás, arroz-doce, feijão-de coco, angus, pão-de-ló de arroz, pão-de-ló-de-milho, rolete de cana, rebuçados.(...).” (Gilberto Freyre. Casa-Grande & Senzala. Editora Global: São Paulo, 2004) Este comércio intenso nas ruas, com as chamadas “vendas”, marcou o consumo e a diversidade de comidas possíveis de serem adquiridas nas ruas da cidade do São Salvador. Também, as leituras sobre o dendê, sem dúvida, marcam um estilo de entender a Bahia pela boca, numa verdadeira civilização, a civilização do dendê. “(...) o caruru e o vatapá feitos com íntima e especial perícia na Bahia. Prepara-se o caruru com quiabo ou folha de capeba, taioba, oió, que se deita ao fogo com água. Escoa-se depois a água, espreme-se a massa que novamente se deita na vasilha com cebola, sal, e camarão, pimenta-malagueta seca, tudo ralado na pedra-de-ralar e lambuzado de azeite-de-cheiro. Junta-se a isto a garoupa ou outro peixe assado. O mesmo processo do efó”. (Gilberto Freyre. Casa-Grande & Senzala. Editora Global: São Paulo, 2004) Ainda, os temas afro-muçulmanos são presentes e marcantes na obra de Gilberto Freyre. Há uma valorização do euro-africano, que são os ibéricos encharcados da civilização Magrebe. “O arroz de hauçá é outro quitute afro-baiano que se prepara mexendo com colher de pau o arroz cozido na água e sal. Mistura-se depois com o molho em que entram pimenta-malagueta, cebola e camarão tudo ralado na pedra. O molho vai ao fogo com azeite-de-cheiro e água.” (Gilberto Freyre. Casa-Grande & Senzala. Editora Global: São Paulo, 2004) Todos esses são exemplos de acervos gastronômicos que são reveladores das maneiras como Gilberto busca trazer o Nordeste, as suas bases multiculturais, e as suas relações com o continente africano, tanto pelo Oceano Atlântico quanto pelo Pacífico. E assim, pela comida, Gilberto vê a Bahia e come a Bahia.

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Um bolo para homenagear o Recife

Gilberto Freyre: “Pode-se falar de um paladar brasileiro histórico e é possível também tropical ou ecologicamente condicionados e como tal ao que parece predisposto a estimar o doce e até o abuso do doce (...) um doce o de preferência brasileira, como que barroco e até rococó (...) é a arte mais sensual da sobremesa.” Pode-se dizer que Pernambuco tem uma forte relação com a criação de bolos. Bolos que trazem memórias ancestrais ibéricas, e bolos que são reinventados para formarem novas memórias. O bolo sempre acompanhou a história de Pernambuco, pois recebe nomes de lugares, de engenhos de açúcar, de famílias; marcam datas históricas; e revelam assinaturas, de doceiras e doceiros, de famílias ilustres à época da criação da recita do bolo. Assim, os bolos marcam a vida de uma sociedade marcada pelos contextos dominantes da cana-de-açúcar enquanto verdadeiras marcas heráldicas. Os bolos são quase brasões feitos de trigo, mandioca, ovos, leite, açúcar, diga-se muito açúcar; frutas frescas e/ou secas; e especiarias do Oriente. O bolo no Nordeste é principalmente uma invenção para expressar os sabores e as estéticas dos trópicos. Bolos para exibirem o glacê “mármore”, feito à base de açúcar e cítricos. Bolos para serem apreciados no dia a dia. Bolos para as celebrações dos santos de junho, com receitas com muito milho e canela. Destaque para Gilberto Freyre que em 2020 celebrou 120 anos de nascimento, e assim, do seu livro “Açúcar” (1939), trago alguns dos muitos nomes de bolos que marcam um sentimento nativo pernambucano. Bolos nomeados como pessoas: bolo Cavalcanti, bolo de milho D. Sinhá, bolo padre João, bolo D. Luzia, bolo Souza Leão, bolo Souza Leão - Pontual, bolo D. Pedro II, bolo de mandioca à moda Dr. Gerôncio. Bolos nomeados como lugares: bolo Guararapes, bolo de bacia Pernambuco, bolo paraibano, bolo de rolo pernambucano, bolo brasileiro, bolo Souza Leão à moda da Noruega.Há outros bolos com nomes diversos como: bolo Divino, bolo de São Bartolomeu, bolo engorda-marido, bolo de São João, bolo Republicano, bolo treze de maio. Trago um estudo de caso que vai além do livro “Açúcar”. É o bolo Recife, um bolo-homenagem à capital pernambucana. Tradicionalmente mantém a forma circular, que é características dos bolos caseiros e das padarias. Ainda, pode ser apresentado no formato retangular ou de “caixa”, e com recheio de doce de ameixa. É um bolo para o cotidiano, para acompanhar o café ou chá, ou mesmo acompanhar um generoso pedaço de queijo. Sem dúvida, o bolo acompanha a vida pernambucana.  

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Cuscuz Magrebe: O ancestral do nosso cuscuz

O cuscuz é o prato nacional do Magrebe, ou seja, Marrocos, Argélia e Tunísia. De procedência Berbere, o cuscuz é uma significativa especialidade local. O cuscuz, em si, é uma espécie de semolina extraída dos grãos do trigo. Até pouco tempo atrás, uma família carregava o moinho com o seu grão adquirido no mercado, porque vinha já macerado, processado finamente, segundo a preferência. Depois, em casa, a mulher colocava o grão em uma grande gamela de madeira, e pulverizando-o pouco a pouco com água,  esfregado entre os dedos de modo que cada grão se umedeça. Isto se faz para que os grãozinhos permaneçam separados durante o “sucessivo” cozimento a vapor. Hoje, por comodidade, quase todos adquirem a farinha já pronta. São infinitas as versões, regionais e familiares, deste prato. Cada vez é diferente: as mulheres colocam à prova, aí, todas as suas habilidades para variar as receitas, porém sendo fiéis à tradição. O cozimento do cuscuz é feito no vapor, numa panela especial que é colocada sobre uma caçarola que contém um guisado ou um caldo. Este guisado, em geral, é preparado com carne, habitualmente carneiro ou galinha, e diferentes legumes. Também, à parte, estão presentes o grão-de-bico, e às vezes, também uvas-passa. Frequentemente colore-se o caldo de vermelho com o uso de tomate, ou de amarelo com o açafrão. Também se colocam diferentes especiarias em quantidades de modo que não se reconheça especificamente cada uma. Frequentemente com parte do caldo se prepara um molho marcadamente picante com pimenta de Caiena ou “chili” – pimenta malagueta –, e um concentrado de pimentão vermelho chamado de “harissa” (pimentão vermelho picante, alho, coentro seco, sementes de cariz – alcaravia –, menta seca, folha de coentro fresco, sal, azeite de oliva). Este molho é servido à parte, colorindo com maior intensidade o prato, ou seja, mais apimentado, para aqueles que desejam o sabor mais inflamado e inebriante. Na cidade de Fez, Marrocos, os guisados de carne são mais leves: os ingredientes veem cozidos e condimentados com muita delicadeza. Na Tunísia e Argélia, são diferentes, são mais substanciosos e saborosos. A carne, e às vezes também os legumes, são antes corados em azeite de oliva. Os tunisianos parecem preferir os molhos decisivamente picantes, e por isso colocam pimenta de Caiena e “chili”. Os argelinos trazem do passado o tomate, todavia os marroquinos preferiram o perfume e a cor dados pelo açafrão. Uma forte influência francesa sobre a cozinha argelina induziu às últimas gerações a usar, nos guisados, legumes europeus, como o feijãozinho, ervilha e cenoura. A preparação do cuscuz é muito simples, entretanto pede um tratamento preciso: os grãozinhos de semolina devem ficar inchados, leves, aveludados, e bem separados um do outro. Não tomando cuidado, o cuscuz sairá grudado e pesado. Os grãos não devem ser cozinhados no caldo ou no molho, mas sempre no vapor; nem também tocar líquido da panela sobre a qual a cuscuzeira está colocada. A cuscuzeira, ou seja, o recipiente tradicional, de cobre ou louça de barro, ou com a inovação mais recente de alumínio, é constituída de duas partes. A parte inferior é um recipiente redondo no qual se cozinha o guisado. A parte superior tem uma forma semelhante, porém possui o fundo com “furinhos”. Aí se põe o cuscuz. Se não encontrar uma cuscuzeira tradicional, pode recorrer a uma panela a vapor ou a uma peneira metálica que se adapte perfeitamente a uma grande caçarola. Molhe o cuscuz com um pouco de água fria, trabalhando-o com os dedos de forma que não se forme grumos. Derrame-o na parte superior da cuscuzeira quando faltar cerca de uma hora para terminar o cozimento do guisado, que está fervendo no recipiente inferior. Mexa os grãos com as mãos para organizá-lo e permitir que se inchem melhor. Deixe-o exposto ao vapor por cerca de trinta minutos. Depois passe o cuscuz para uma ampla terrina, e borrife-o abundantemente com água fria e o mexa com uma colher para esfarelar eventuais grumos, e separar os grãos que com água se juntaram e colaram. Agora, desejando, pode acrescentar um pouco de sal (às vezes, contemporaneamente, se une uma colherada de azeite de oliva). Passe novamente o cuscuz para a parte superior da cuscuzeira e prossiga o cozimento a vapor por mais trinta minutos. Alguns preferem cozinhar o cuscuz expondo-o apenas ao vapor da água fervente, e então o serve com um guisado preparado à parte. Existe hoje no comércio o cuscuz pré-cozido, cuja preparação pede pouquíssimos minutos. Siga as instruções que encontrará na embalagem sobre o preparo do cuscuz.  

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O tabuleiro, o acarajé e o sagrado

Acarajé é uma comida do final da tarde. É uma comida de Iansã orixá dos ventos e que representa a mulher livre. Iansã, que também é conhecida por Oyá, ensinou a mulher o ofício de fazer acarajé. É comida rápida, de rua, para ser feita na hora. É uma comida de mercado, de tabuleiro. Comida quente, feita no azeite de dendê. Cada vez mais a “comida” é percebida e valorizada como uma manifestação cultural que sensibiliza e se comunica com as pessoas. A comida exige todos os sentidos e sentimentos para ser, verdadeiramente, integrada ao corpo e a memória, ganhando valor simbólico. Certamente na boca começa a emoção. É justamente na boca, apoiada pelos sentidos da visão, olfato, audição e tato, que a comida é integralmente entendida e assimilada. Comer não é apenas um ato biológico, é antes de tudo um ato tradutor de sinais, de reconhecimentos formais, de cores, de texturas, de temperaturas e de estética . A presença da matriz africana está principalmente nas receitas que fundamentam a nossa culinária, particularizando e construindo o paladar do brasileiro. A nominação de produtos, ingredientes e temperos, apontam para a diversidade de povos e de civilizações que integram a nossa mesa e os nossos hábitos alimentares. Dos muitos pratos de matriz africana, o acarajé é um dos mais importantes, pelo que significa em âmbito social e religioso, e pelo que significa na afirmação de uma longa tradição de vender comida na rua, no caso com a baiana de acarajé. A venda de acarajé no tabuleiro é uma permanência econômica que data da época dos “ganhos”. Há uma profunda identidade e pertencimento do acarajé com o povo baiano nas suas muitas tradições culturais. Também o acarajé integra as tradições africanas de Pernambuco, Maranhão, Rio de Janeiro. O acarajé é uma comida preparada com um tipo de feijão, que recebe o nome popular de “fradinho”; cebola, sal e é frito no azeite de dendê. O feijão é limpo, lavado, e passado em um pilão de pedra – pilão lítico. A massa é acrescida de cebola ralada, sal, e deve ser muito bem batida para manter a aeração e a textura necessária. O acarajé tradicional tem o formato e tamanho de uma colher de sopa. Deve ser comido quente, puro, ou com molho de pimenta; podendo conter ainda vatapá, caruru, salada, e camarão defumado, transformando-se num verdadeiro sanduíche, popularmente chamado de “sanduíche nagô”. O acarajé está presente no cardápio sagrado do candomblé, sendo comida especial dos orixás Iansã e Xangô. Há uma forte identidade do dendê nos cardápios que são preservados nas cozinhas dos candomblés. Ele marca territórios de receitas e de conhecimento tradicional que se amplia para as casas, para as comidas do cotidiano. Os acarajés oferecidos aos orixás têm formatos especiais e são ritualmente colocados nos pejis – santuários – com outras comidas. O acarajé é frito na hora. O dendê fervente aproxima os devotados consumidores desse bolinho que traz o cheiro da África. Ele é uma refeição ou um lanche; com também é o abará, o bolinho de estudante, as cocadas, os bolos; entre outras delícias da venda pública e profundamente cerimonial no tabuleiro.

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Quiabo: sabor africano

O quiabo, como o jiló, é um ingrediente cuja a preferência e uso culinário é pessoal e passional. Quem gosta de quiabo tem que gostar da sua baba, porque quiabo sem baba não é quiabo. E assim também é com o jiló, com o seu “amargoso” inconfundível, senão não é jiló. O quiabo é uma leguminosa muito popular que é o tema de inúmeras receitas, e as mais tradicionais sempre dizem: quiabo tem que ter baba. Particularmente, eu gosto muitíssimo da baba do quiabo, que é uma marca da leguminosa, e que caracteriza as suas receitas. O quiabo faz parte da culinária do cotidiano e das festas de matriz africana com as chamadas comidas moles. Tanto o quiabo quanto o jiló vêm do continente africano, e consequentemente têm uma forte presença na mesa baiana. Tais como outros produtos africanos como: o azeite de dendê; o lelecum e o bejerecum para temperarem doces; o ataré ou pimenta da Costa, um tipo de pimenta seca. O quiabo é também conhecido como quigombó, gombô, entre outros nomes em línguas africanas. O seu uso estende-se do Brasil ao Caribe, além de outras localidades com presença afrodescendente expressiva, como é o caso de Nova Orleans, Estados Unidos. O quiabo está no clássico caruru inundado de dendê; nas quiabadas enriquecidas com camarões defumados e embutidos; e estes pratos são normalmente acompanhadas de pirão de leite ou com muita farinha de mandioca. O quiabo também integra a receita do tão conhecido molho Nagô, importante complemento do acarajé e do abará. Ainda, faz-se com o quiabo uma comida ritual muito semelhante ao caruru, que é o amalá, isso na tradição afro-brasileira, com muitos quiabos e pimentas. Todas essas receitas trazem uma comida com viscosidade, e a baba do quiabo caracteriza e dá identidade para esses pratos que podem ser acompanhados por arroz branco, acaçá branco, bolas de inhame; ou recoberto com farinha de mandioca. O amalá é servido àqueles que frequentam, nas quartas-feiras, dia de Xangô, os candomblés da Bahia como, por exemplo, o Ilê Axé Opô Afonjá; e é nessa comensalidade que o sagrado também se manifesta. É a celebração da comida como uma homenagem a este orixá. Adoro quando os quiabos estão bem verdes, novinhos, especialmente se foram escolhidos um a um, conforme a maneira tradicional de se comprar, ou seja, quebrando a pontinha do quiabo. Assim, verifica-se sua qualidade para que haja um bom desempenho da receita, e para que os preparos sejam saborosos, e os temperos possam imperar, pimentas frescas ou secas, gengibre, dendê, além dos camarões defumados . Creio que há um bom cardápio de comidas verdes na tradicional cozinha baiana com ingredientes como quiabo, jiló, maxixe, bredo, folha de taioba, folha de mostarda; maniçoba, na forma de “bolas verdes” feitas das folhas da mandioca já bem cozidas. E o verde também estas nas folhas usadas para embalar preparos como a pamonha de carimã, a moqueca de folha. O verde da folha indica o tipo de receita e a sabedoria de cozinhas artesanais. Ainda, nas chamadas “comidas verdes”, há o maturi, a castanha do caju bem verde, usada para preparar deliciosas moquecas ou frigideiras. A gastronomia tradicional de matriz africana é ampla e rica. E se vive nos quiabos as delícias das comidas moles, com “baba”, porque cada ingrediente tem uma marca, um sentido visual que caracteriza cada receita. O quiabo é um tema da mesa de matriz africana, e ele é tão marcante quanto o dendê, o camarão defumado, entre outros ingredientes que determinam estilos e linguagens culinárias que particularizam os rituais sociais da alimentação nas bases do que entende por etnoalimentação.

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O ritual social de comer

Certas comidas, seja pela densidade, forma, ou simbolismo, só deveriam ser comidas de mão. Não importa se o local onde comemos, na rua, no balcão de um botequim, ou a forma que comemos, às pressas ou numa calma quase budista. O que verdadeiramente importa é a ação imediata que se dá pelo contato da comida com a boca, sem o uso dos talheres, para atender ao desejo físico, sensorial, e porque não dizer sensual. Na infância, quem nunca comeu o “capitão”, um bolinho feito com feijão e farinha de mandioca, e um pouco de carne seca desfiada, ou mesmo uma rápida lembrança do toucinho, tudo amassado com as mãos. E alguns, ainda, eram culminados com uma batata frita, banquete que traz a saliva à boca só de pensar. Feito à mão, e levado ao especialista, o paladar. Também, lamber os dedos para não desperdiçar nada. E a oportunidade de reciclar, após um ou dois dias a feijoada de feijão preto. Há os doces, quase todos, são para as mãos, e se a calda do doce de fruta for grossa, perfumada de cravo e canela, e a fruta tiver consistência, vamos esquecer a colher, para que se possa intercambiar uma relação verdadeiramente carnal. Quando se come com as mãos pode haver dois sentimentos dominantes: a pressa; ou a calma, que busca refletir sobre a identificação de cada ingrediente, a cor, a estética, a textura, um verdadeiro exercício filosófico do ato de comer.  A mão é o nosso primeiro talher; o uso dos dedos é uma habilidade especializada para preparar e para comer. Fazer a comida é experienciar o tato como uma forma fundamental para um bom resultado gastronômico. No prazer de selecionar o alimento há uma intenção de senti-lo. Da mão de quem faz para a mão de quem come. Há um jeito próprio, especial, de se relacionar com a comida, ou na relação cultural do ato de comer, e assim traduzir o que se come. Comer o abará na folha de bananeira no qual ele foi cozido é um costume tradicional, pois a folha, previamente passada no fogo, confere seu odor próprio para essa a massa de feijão-fradinho, misturada com camarão seco defumado, sal, pimenta e azeite-de-dendê, e além de temperar, a folha é embalagem feita para se facilitar comer com as mãos. Então, comer com as mãos, essa iguaria afrodescendente, é um ritual que também se repete com o acarajé, o acaçá, a cocada, o bolinho de estudante, todos do tabuleiro da tão celebrada Baiana de Acarajé, que desde 2001, é Patrimônio Nacional Brasileiro. Justíssimo! Entretanto, associada à todas as formas de manipulação, nasce uma questão relacionada à higiene. Tema de total interesse às regras de controle social do alimento. Contudo, muitas fronteiras conceituais, entre as muitas maneiras de preparar, servir e consumir a comida, que passam pelo processo manual, e a mão é uma ferramenta símbolo para os processos culinários, sendo seu uso tão importante quanto o resultado da comida. O uso ancestral da mão nas escolhas e nas transformações dos ingredientes, além de fazer parte das etapas técnicas, também faz parte de um conjunto de rituais que trazem diferentes significados, sentidos e sentimentos, para o ato de comer. Assim, os princípios da higiene merecem uma intermediação cultural para que se busque integrar os rigores da sanidade da alimentação com os rigores das identidades culturais. Há uma impressão digital intransferível, personalizada, na manipulação, no oferecimento e no consumo da comida. São os ingredientes que se aproximam intimamente numa relação de produto e de corpo, pele, emoção, energia, sentimento, que é transmitido pelo toque humano, que é fundamental, autoral, doador de sabores.  

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95 anos do Manifesto Regionalista de Gilberto Freyre

“Há quem se suponha mais devotado que os demais às tradições da região, mas que seja incapaz de descer à cozinha para provar o ponto do doce de goiaba.”   Os contextos socioculturais e políticos dos anos 1920 levam a um ambiente de mudanças e de descobertas num mundo pós 1ª Grande Guerra Mundial. Surgem novas leituras sobre território, região, nação, povo e, em especial, sobre patrimônio cultural. Assim, passam a ser valorizadas as memórias ancestrais, que são fundadoras e autenticadoras de identidades, e de referências para as comunidades e para as pessoas. Estes cenários sociais sensibilizaram Gilberto Freyre para organizar um “Manifesto” profundamente telúrico, contemporâneo, que se propõe em olhar e valorizar os patrimônios culturais nos seus testemunhos de pedra e cal, como as igrejas barrocas, e os engenhos de açúcar; e nos seus testemunhos vivos como as festas dos maracatus africanos, que são também tão barrocos quanto as talhas das douradas. Ainda, a arte popular representativa dos usos e das simbolizações do homem regional; das receitas de bolo, de tapioca, seca ou ensopada ao leite de coco; entre muitas outras comidas, onde todo esse conjunto irá formar as identidades e as singularidades do território. Para Gilberto, ser regional também é ser atual, moderno, porque manifesta histórias e significados da diversidade local. Este entendimento toca nos contextos internacionais, e isto possibilita que haja um diálogo com as culturas do mundo; especialmente, com os movimentos estéticos do surrealismo do dadaísmo, do fauvismo, que buscam nas artes étnicas da África e da Ásia, as descobertas do outro, numa ampliação do sentimento de diversidade. “Foram os Regionalista Tradicionalistas do Recife a seu modo modernos e até modernistas. Tanto que a eles se deve, não só a revelação, no Brasil, e a adaptação, à língua portuguesa, do Imagismo, como a defesa de uma pintura de uma escultura e de uma arquitetura que fossem de vanguarda nas formas substancialmente, regionais, (...).” Sem dúvida, vigora uma determinação patrimonial de preservar a memória na experiência do bem patrimonial, porém não é apenas a preservação para apreciação. E isto é expressivo em Gilberto, que fortalece a interação da pessoa com a comida e as bebidas e, em destaque, a água do coco verde. Ainda nos anos 1920, há avanços conceituais de Gilberto no seu Manifesto Regionalista, que mostra um outro entendimento à época sobre os patrimônios culturais e a sua fruição nos museus, que eram mais integrados à vida regional, sem hierarquizar acervos e testemunhos sociais. “(...) querer museus com panelas de barro, facas de ponta, cachimbos de matutos, sandálias de sertanejos, miniaturas de almanjarras, figuras de cerâmica, bonecas de pano, carros-de-boi, e não apenas relíquias de heróis de guerra e mártires de revoluções gloriosas(...)”. O mesmo deveria ocorrer nos restaurantes, nos bares, nos mercados do Recife, com a permanência de cardápios reveladores dos hábitos alimentares da região, e que são formas de preservar as memórias dos sabores dentro de uma construção plural da cultura. Precisamos valorizar o bolo de massa-puba, a cocada, o doce de caju em calda, o “nêgo-bom”; as frutas da terra que são celebradas na forma de sucos, sorvetes. São os nossos sabores do território e da região. No seu Manifesto Regionalista, Gilberto Freyre mostra as tradições populares como sendo as mais reveladoras e construtoras da singularidade de uma região, pela experiência no cotidiano, na festa, na religiosidade, nos ofícios; e, mais uma vez, tudo isso junto traduz as experiências patrimoniais. “De modo que, no Nordeste quem se aproxima do povo desce a raízes e a fontes de vida, de cultura e das artes regionais. Quem se chega ao povo está entre mestres e se torna aprendiz”. E assim, Gilberto afirma no seu Manifesto o que é ser regional, patrimonial, socialmente valorativo, humano e tradicional. E, no seu mais profundo entendimento, tradição é o mesmo que transmissão. Nota: Todas as citações são do Manifesto Regionalista de Gilberto Freyre.  

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